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domingo, 9 de abril de 2017

A ÚNICA GANGORRA DE ZOÍ* By Sandra Boveto

(O Menino e o Povoado, Candido Portinari, 1958)



A ÚNICA GANGORRA DE ZOÍ

No parque de diversões, diversidades e adversidades da vida, Zoí recebeu uma gangorra.
De um lado, a vida é bela, tanto quanto pode ser. Desse lado, há coisas duramente conquistadas e outras gentilmente concedidas. Há pessoas especiais, amadas e capazes de amar. Há habilidades aguardando a possibilidade e a alegria da realização. Há um infinito anseio por um conhecimento infinito. Há também olhos que enxergam a beleza em cada coisa e em cada um, sem romantismo, apenas com o realismo de olhar além das imperfeições naturais, sem as quais o belo nem mesmo existiria. Há lucidez e compreensão sobre muito e sobre muitos. Dessa compreensão, decorre uma tolerância firme não apenas ao mundo de fora, mas também ao mundo dentro de Zoí.
Mas há o outro lado da gangorra, pois a vida é mesmo assim.
Do outro lado, está o peso da dor e da exaustão. Estão a ansiedade, a vulnerabilidade e o torpor delas resultantes. Há indisposição sob as mais variadas expressões. Diariamente! Constantemente! Indefinidamente! Há pressões, opressões e impressões coladas, grudadas, impregnadas sobre o outro lado da indeclinável gangorra de Zoí.
A criança elegeu o primeiro lado para brincar, e se esforça para lá permanecer. Apesar de brincar sozinha em uma gangorra, o outro lado pesa ilogicamente. Seus poucos elementos desumanos são dotados de forças sobre-humanas, que compelem a extremidade indesejada da gangorra para baixo, de forma traiçoeira, pérfida. Sem escolha, Zoí desliza sobre a gangorra. Desesperadamente, tenta agarrar-se ao lado que escolheu. A gangorra, porém, torna-se íngreme demais e seu corpo escorrega. Ela é levada por uma gravidade particularmente humana para o outro lado. Os elementos desse outro lado são cruéis e estão lá, à espreita, para atacar, torturar, mortificar... mas apenas isso. Eles duramente maltratam Zoí, mas não a querem fora da gangorra.
Ela não se conforma. Não se entrega. O lado bom da gangorra faz com que ela se apegue e queira permanecer no seu brinquedo, ainda que tenha que recorrer a forças externas, dessas que diminuem o discernimento e reduzem, aos poucos, o tempo sobre sua tão especial gangorra. Zoí opta por recorrer a elas, pois, com frequência, resultam na única maneira de poder subir, rastejar para o outro lado. A frágil criança alcança o ponto médio do precioso brinquedo, às vezes. Mas Zoí precisa ir além, acreditando que se fosse possível colocar-se completamente daquele lado, onde está a melhor parte de si, seria capaz de catapultar, para fora da gangorra, os elementos nocivos que a ela se opõem.
Os pequenos demônios, no entanto, prendem-na pelos pés, enquanto Zoí tenta arrastar-se gangorra acima, apoiando-se numa inexplicável gana por atingir o lado eleito. Ficam ali, agarrados aos seus tornozelos, detendo e puxando Zoí. Muitas vezes ela não resiste e cai, mas permanece consciente, olhando a outra ponta da gangorra, ansiando por ela. Nesse momento, usa toda a energia que lhe resta, e também aquela que surge apenas de olhar para o lado bom, para não se lançar para fora da sua única gangorra.
Essa é a gangorra de Zoí... é a sua única gangorra... e ela não se ocupa pensando se há gangorras melhores ou piores. Mas, em alguns momentos, pode olhar em volta e ver outras crianças brincando, brigando, lutando pela sobrevivência em seus próprios brinquedos. Percebe que nem todas sobrevivem – algumas crianças caem e outras se jogam. Vê também que muitas não brincam sozinhas. Zoí é apenas mais uma criança em um imenso parque de diversidades, adversidades e, também, diversões da vida.
Com o passar das estações, a gangorra de Zoí revela típicos sinais de ferrugem e desgaste. Esteve sempre exposta às intempéries desse parque solto no espaço, ao longo do tempo. Sua estrutura demanda reparos, mas ainda não há ferramentas ou técnicos capacitados a reparar defeitos tão peculiares.
Sozinha sobre a gangorra, Zoí busca o equilíbrio. Lembra-se, no entanto, de que o propósito de uma gangorra não é o equilíbrio.

No futuro, a gangorra de Zoí vai parar sobre um dos lados. Qual será?

- Sandra Boveto -

Um comentário:

  1. Boa noite Sandra!Parabéns por mais esse texto super reflexivo, a vida é bela porém é uma gangorra, nossos medos e anseios é o peso que temos que carregar, depositado de um lado da vida e no outro nós, se por um lado há discernimento para entender ou se dispor a entender as coisas a vida como de fato é nua e crua do jeito que tudo se mostra com dois lados alternativos, olharmos as pessoas além das imperfeições aparentes, imperfeições essas criada e infiltrada em nós "feios"mortais, sim, feios sim, porque se olhando além das imperfeições poderemos notar que o belo não existe, poderemos também ver que o feio é ausente, o que é feio? o que é bonito?Nós vemos uma lagartixa e achamos horrorosa e nós para a lagartixa? Descomplicando somos todos belos ou somos todos feios, tudo depende do ângulo, da luz e da pouse do clic e do close.Forças invisíveis o tempo todo caminha com a gente por dentro e esse lado é o que nos faz atraente ou repulsivos, prontos para nos transformar em catapultas gigantes e velozes e nos lançar rumo ao sucesso almejado e efêmero ou ao caos que graças às forças positivas também os são!!!Muito bom mesmo seu texto Sandra,Amei mais este. Bjos

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