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segunda-feira, 6 de março de 2017

CRÔNICA DA COCEIRINHA *By João Urague





CRÔNICA DA COCEIRINHA

Não é falta de assunto, mas de repente qualquer assunto pode sobrar ao cronista. Exemplo dessa coceirinha nas costas de vez em quando, com certeza! Ora, não há coceirinha que desmoralize tanto, que ridicularize mais o oponente do que a dita cuja, é ou não é? Claro que não se trata de nenhuma coceirinha qualquer! Estou falando exatamente daquele lugar privilegiado em alguma parte das costas, onde a mão cheia de dedos, devidamente armados de unhas deliciosamente paramentadas para coçarem à exaustão qualquer parte do corpo que se preze; e que de repente resultam inúteis, impotentes, diante da meta plenamente inalcançável.

Primeiro você tenta por baixo, com o braço à socapa subindo pela cintura, depois você tenta por cima com o braço deslizando disfarçadamente por cima do ombro; porém, em ambos os casos o braço encurta inexplicavelmente, a mão encolhe frustrada de intenções mais caras... enquanto que o dedo indicador fica ali, quase que acertando o lugar exato, mas que vai escapando pelas beiradas, parece que mudando de repente de lugar, para fora da possibilidade do próprio dedo.

Se não fosse tão ridículo, você quebraria num rompante o protocolo, e esfregaria as costas na primeira superfície áspera que encontrasse, como fazem as vacas sem cerimônia, por exemplo... Mas você, não! Advertido por alguns olhares, bicho civilizado que é, bem provido de dedos e de unhas, fica ali como se masturbasse em segredo, tentando tirar o máximo proveito de qualquer situação promissora para esse fim.

O pior é que a bendita vai afagando pelas beiras, trocando de lugar imperceptivelmente, driblando os dedos em disputa, esquivando-se por entre as unhas arregimentadas de lâminas febris, e, ainda pior; parece que ligeiramente prestigiada pelos afagos inusitados, vai aumentando aos poucos de intensidade, sadicamente.

O ato de se coçar publicamente é deselegante, com certeza! Os animais o fazem sem vergonha, mas o bicho-homem estabelece para si certos limites cravados no senso comum... e é claro que em nome desses valores, você fica ali se torturando secretamente.

Fosse o braço mais longo, ou que fossem as costas menos amplas; ou então que você fosse mais magro: são questões que você levanta aos ouvidos de si mesmo. Você promete que vai tomar providências, que vai ao médico saber que diabo tem ali, algum cravo, alguma espinha, alguma verruga... mas daqui a pouco, a coceirinha cessa milagrosamente, que você até se esquece dela. Esquece até de mostrar as costas para alguém da família, que tenha os olhos clínicos afiados para essas especialidades; que de repente de forma ligeiramente subornável possa quem sabe apertar aquele cravo, espremer aquela espinha; ou te dizer pelo menos que ali não existe nada, e que aquela bendita coceirinha deve ser mesmo fruto da tua ociosa imaginação.

... E no mais das vezes é! A nossa imaginação é danada para fazer a gente se coçar à toa. A ilusão, por exemplo, é uma coceira na alma contra a qual não há antídoto que dê jeito; exceto a própria desilusão. Vivemos nos coçando na esperança, na saudade, na mentira, na arrogância, na hipocrisia, na inveja; que são formas inúteis de se coçar na vida.

Melhor mesmo é atingir o local da coceira com algum objeto contundente, de maneira que até machuque o local. Se doer, tanto melhor! Só a dor é que pode no mais das vezes disfarçar aquela coceirinha impertinente em algum lugar das costas; assim como a muleta pode de pronto mascarar a doença... Ou, o remédio da vida pode ser inexoravelmente a própria morte!

João Urague



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