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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

VERNÁCULO DE ORGULHO E EMPÁFIAS - Manoel Ferreira Neto.


Se alguém me pedisse conselho: “por favor, estou com problema, gostaria que me ouvisse, aconselhasse”, “não sei mais o que fazer, aconselhe-me de algum modo”, nestes dizeres ou noutros que co-®-respondam – embora dizerem que se conselho fosse bom, desse resultado, surtisse efeito, seria vendido e não dado; há quem ouve, ponha em prática, mude os seus rumos e horizontes, há quem não o faça -, não titubearia único instante, antes de piscar mais uma vez, antes do próximo trago no cigarro, dir-lhe-ia sereno, tranqüilo, gesto e atitude de quem está com a verdade nas mãos feitas concha: “passe das riquezas intelectuais às materiais”, é a mesma coisa, mas seria um excelente conselho. Se só sabe, desde sempre soube, o vernáculo e o latim, nada entende de negócios, de ganhar dinheiro, em vão lhe provaria que tem o dom da lábia, da oratória – verdadeiros intelectuais podem esbanjar esse dom, dar, vender, alugar, emprestar, ainda restando muito para ele próprio -, imprescindível para quem faz negócio, vende seus produtos, sabe com perfeição enganar o cliente, tripudiar com os seus interesses e objetivos do mesmo; se se entregar de corpo e alma, não levará muito tempo estará “podre-de-rico”, poderá jogar dinheiro fora, rasgar, dar gordas gorjetas aos garçons dos restaurantes finos, altas esmolas aos mendigos, não sentirá qualquer prejuízo no bolso, na conta bancária, no cofre atrás da porta da alcova, da estante de livros.
Verdade pura, acredite se puder, tiver condições sensíveis e psíquicas, alguém me pedira conselho, um homem das letras ridículas e mesquinhas, não conhecia qualquer vernácula, não sabia única máxima latina, nem a mais badalada de todos os tempos “cogito ergo sum”. Estávamos tomando uma “cerveza” – nunca dizia a palavra corretamente, trocava o “j” pelo “z” – no restaurante do Joãozinho “pé frio”, não porque fosse azarento, sorte lhe faltava de fio a pavio, mas porque seu pé direito era frio, enquanto o esquerdo, quente, as más línguas diziam que era possível acender um cigarro nele.
A pessoa estava enfastiado de tanta miséria, vendia o almoço para comprar o jantar, só comia a metade do pão francês pela manhã, guardava a outra metade para o lanche noturno, não conseguia dormir sem comer alguma coisa, saía de madrugada de casa para catar tocos de cigarro, as letras não lhe garantiam único bago de feijão. Pensei comigo mesmo que se fosse ele um homem de letras profundas, linguagem e estilo autêntico e originais, soubesse escrever como ninguém o fizera antes dele, não estaria passando tantas dificuldades, não estaria passando fome, teria dinheiro para comprar seu maço de Charm, Hilton, seu desjejum seria dos mais suntuosos, o re-conhecimento dos leitores levar-lhe-ia a uma editora, publicaria suas obras, ganharia as percentagens de capa que cabem aos escritores – as editoras, felizmente, nos tempos atuais estão cobertas de razão, conhecimento: só publicam escritores de obras-primas no estilo, linguagem, forma, os leitores têm aversão, ojeriza, asco, à literatura chinfrim, imbecil, idiota, estamos no tempo das “vacas gordas” -, no final do mês, receberia suas comissões, sete por cento, dez por cento, garantia sua vida, suas necessidades, que as editoras pagam por preço de capa, aliás, vale ressaltar e enfatizar, muitíssimo justo, houve tempo que não se pagava nem um por cento, era meio, e não se discutia. Sendo grande escritor, re-conhecido pelos leitores, não teria qualquer dificuldade, seria vendido além de suas expectativas, várias edições de única obra. Quem sabe no frigir das claras e gemas não comprasse um castelo moderno na Alemanha com o dinheiro ganho com suas obras, estudado nas universidades, encomiado pelos intelectuais, especialistas, mestres, doutores, um deus das letras, rodeado de fãs, bajuladores, interesseiros, mais ou menos como fora Machado de Assis no final do século XIX.
Lembrou-me que, numa de suas entrevistas numa rádio, rasgara os verbos, dizendo que era homem dos dois “p”, pobre e da periferia, queria dizer, inautenticamente, que se tornou privilegiado com sua inteligência, capacidade, conseguiu publicar suas obras, era a quarta, estava alegre e saltitante, muitíssimo agradecido aos seus leitores, amigos, íntimos, que sempre lhe incentivaram, entusiasmaram na carreira. Quem, nestas condições, iria pedir conselho, confessar misérias, dificuldades, estava cansado, enfastiado de sua vida de intelectual, de escritor? Ninguém. Com efeito, tossi no momento; felizmente, havia acabado de tragar a fumaça do cigarro, engasguei-me, não fosse isto, talvez houvesse de explicar-me, a tosse dizia respeito a dizer-lhe na “lata” que não tinha condições de ser escritor, intelectual, as pessoas simplesmente estavam tirando sarro da sua casa, incentivavam as hipocrisias para poderem rir, gargalhar, comentar o que é isto de um homem que não conhece suas próprias inferioridades. Sabia que o meu convidado a tomar cerveja no restaurante do Joãozinho “pé frio”, pagava-lhe a despesa, não tinha condições de se fazer no mundo das letras, no métier dos intelectuais, então lhe disse tranqüilo: “passe das riquezas intelectuais às materiais”, o que lhe  chamou a atenção, a intelectualidade era a responsável por sua pobreza, misérias, suas dificuldades até de ser considerado homem, indivíduo, cidadão. Olhou-me interrogativo, circunspecto, olhar de quem implora, roga alguma coisa, explicação, justificativa, de que não entende o que realmente lhe está sendo dito.
Chamei o garçom, pedi-lhe que nos levasse uma porção de carne de sol com mandioca – os olhos do convidado faiscaram de tanta alegria, creio que a boca salivou, nunca pensou que iria comer um prato desses, se pudesse conservaria a carne de sol com mandioca no estômago por várias décadas, a fome ter-se-ia sido extinta por todo o sempre. A verdade é que desvirtuar-lhe a atenção um pouco, teria de lhe dizer as coisas, ser-lhe honesto e franco, enquanto estivesse comendo não sentiria a dor da verdade. Também pedi uma garrafa de vinho dos melhores que Joãozinho “pé frio” tivesse na sua adega.
- Então, não vai dizer alguma coisa... – disse-me, olhando-me com fixidez; estava esperando minhas palavras, conhecia minha honestidade, conversar com homens assim é que amadurece, cresce.
Alguma coisa, de que não me lembra no momento, chamou-me a atenção, creio que foi a presença de um vereador, ex-prefeito, que saíra de sua mesa, passando a cumprimentar todos os clientes com um aperto de mãos, três tapinhas no ombro, era tempo de política, as eleições estavam bem próximas, garantia sua candidatura.
O garçom levou a carne de sol com mandioca, o vinho. Em vão, provei-lhe que ele escrevia como Vieira ou Cícero, Machado de Assis, Apuleio, Sartre e Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso e Dostoiévski. Admirava-me sobremodo que estivesse tão miserável, letras como as suas propiciavam verdadeiros banquetes, alguma coisa estava errada com ele. Ouvira de vários de seus leitores elogios os mais suntuosos, estava abafando no mundo das letras, o único escritor em evidência de nossa terra. Talvez fosse melhor que mudasse de editora. Dissera-lhe, como conselho, que passasse da intelectualidade à materialidade, para esquentar a língua, afiá-la. Talvez fosse melhor mudar de editora, seu problema era a falta de divulgação de seu trabalho. Foi quando fiquei sabendo que alguém lhe pagava as edições, que, aliás, eram primorosas, melhor papel, a obra costurada, a capa de primeiríssima qualidade. Então, sugerisse ao seu padrinho que mudasse de editora, rogasse aos editores que divulgassem mais a obra, no lançamento fizessem um banquete para os intelectuais e escritores, amigos, íntimos, com efeito, isto estava faltando. Os leitores são exigentes em lançamentos: querem banquetes, sentem-se reconhecidos, compram os exemplares, alguns até mais de três para doarem aos amigos e conhecidos. Sabia eu que não suas obras jamais foram lançadas, nunca houve qualquer evento de lançamento. 
Ouvia-me com todos os ouvidos possíveis e impossíveis. Estava eu mais do que com a razão. Naquele dia mesmo, iria procurar o seu padrinho, tentar convencer-lhe a mudar de editora, aumentar a edição de 200 exemplares para quinhentos. Talvez conseguisse fazê-lo. Verdade pura e inconteste: se comi uns dez pedaços de carne de sol e mandioca foi muito, o convidado comeu tudo, quase de única vez, estava mesmo faminto. Bebera o vinho quase de um só gole.
Já era quase meia-noite, precisava ir embora, a minha querida esposa não dorme enquanto eu não chego em casa, fica muito preocupada comigo, o meu cinismo e ironia, sarcasmo ainda me darão sérios problemas, conseqüências, o que ele me respondeu que Patrícia estava equivocada, nunca em toda a sua vida conheceu um homem tão sincero, digno, honesto como eu, ninguém iria dizer-lhe tantas coisas reais e verdadeiras, sentia-se até orgulhoso com a minha amizade, consideração, respeito. E eu no íntimo pensava comigo próprio: “O que a miséria e a fome fazem de um homem. Não tem quaisquer condições de separar o trigo do joio”.
- Não sei como, meu amigo, mas, conforme suas palavras, tenho condições de superar os meus problemas de miséria e pobreza, minhas letras são profundas, o povo gosta é de profundidade. Não vou passar da intelectualidade à materialidade, vou-me aprofundar na intelectualidade. Não sei mesmo tratar de negócios, vender produtos. O que venderia? Talvez começasse vendendo as roupas, inclusive cuecas e meias furadas, para a sobrevivência.
Soube mais tarde, através do próprio Joãozinho “pé frio” que o amigo perdera as noites e os sonos em cima dos livros – não gastou fortuna na compra deles, pois que não tinha um “tostão furado”, mas emprestou da Biblioteca Pública -, comera as unhas, ao invés de pão, encanecera, encalvecera, não morrera com as angústias e depressões que isto causa, sem crer que o mal distingue o verbo do advérbio, mas continua vivendo, respirando, inspirando, andando, buscando esclarecer a diferença entre ser intelectual e dedicar-se a ganhar dinheiro, ser rico, milionário, bilionário, vender o seu barraco na periferia, comprar uma mansão na Soares dos Santos que é o bairro das grandes personalidades de nossa comunidade, mais ou menos como Hollywood nos Estados Unidos

  

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