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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

TERTIUM QUID ESTILO E ESTÉTICA NO TRABALHO DE GRACILIANO RAMOS - Manoel Ferreira Neto.



O Objetivo Verdadeiro da are é o reino infinito do espírito.
Hegel

Ao pensar, refletir, meditar, con-templar as obras de Arte, as pessoas dizem que gostam mais de uma do que de outra ou, então, que preferem ler Machado de Assis a Lúcio Cardoso. Tais observações são expressões de reações subjetivas, satisfazem o objeto do prazer, embora, olhando de modo profundo, se possa inferir delas algo sobre as obras de Arte em questão.
Do julgamento ou Veredicto de que uma obra de Arte é linda, encantadora, bela, nada se pode inferir, nada se pode deduzir quanto às características que a mesma possui, com exceção quanto ao contexto e, mesmo assim, de modo sobremaneira remoto, sem lógica estrita.
Dizendo alguém acerca da obra de Arte, que ela é dinâmica, unificada, delicada, quente, formal ou econômica, então certo tipo de caracterização da obra está-se dando, e isso exige certa receptividade, observação de algo na composição.
Qualquer pessoa, com faculdades normais de percepção, pode ver e sentir o dinamismo de uma obra de Arte e toma cuidado para não adulterá-la de modo que lhe possa tirar o prazer. Existe um modo de percepção que é particularmente estético. Podemos ser objetivos de diversas maneiras, e algumas delas colocam a percepção como um todo, em posição bastante subordinada. Tal concepção poderá ser objetiva, significando apenas que ela está de acordo com as normas. Entretanto, suficiente não será imaginar que a experiência da Arte seja primariamente caso de interpretação reflexiva das coisas. A espécie de objetividade que temos em vista deverá ser, de modo fundamental, uma maneira objetiva de olhar para as coisas, não de pensar nelas nem interpretá-las, ainda que isso esteja atendendo à experiência, elaborando-a. O problema é distinguir a experiência das coisas, segundo o modo estético de percepção, da experiência das coisas, segundo os modos perceptivos nos quais se assentam as caracterizações não estéticas.
O problema essencial é estabelecer as condições a serem satisfeitas por essa espécie de percepção que é propriamente chamada de estética, a espécie que re-vela as características estéticas das coisas.
Ser-nos-á útil começar pelo estabelecimento do conceito de percepção estética no conjunto da filosofia da percepção em geral.
Um tipo de modelo básico influencia muitas reflexões tradicionais e correntes sobre o problema da percepção. O quadro é o de um campo de experiência, no qual o sujeito (mente) defronta-se com o objeto (matéria). Tanto o sujeito como o objeto possuem um âmago ou essência. O que é essencial ou mais chegado ao sujeito em sua mente são os seus pensamentos, depois vêm os sentimentos e as sensações, nessa ordem, em direção ao exterior. Os pensamentos são bastante interiores e particulares; os sentimentos já o são menos e as sensações menos ainda.
A função da Arte é organizar os diversos fatores psicológicos ou subjetivos na pessoa que está tendo a experiência estética. Não é função da Arte re=velar nenhuma característica das coisas, mas antes realizar alguma coisa de valioso para a psique da pessoa. A pessoa deve deixar que a Arte lhe produza harmonia  no  íntimo.
O que distingue Ramos como autêntico escritor e grande romancista é o estilo, através dele estabeleceu e construiu uma estética quase sem precedentes e, sendo assim, torna-se indispensável saber antes de mais o que significa o estilo de romancista.
George Santayana descreve a beleza como sensação de prazer objetivado. Essa objetivação faz o sentimento aparecer como qualidade da coisa que está sendo experimentada como bela. Dá excelente descrição de como os sentimentos geralmente funcionam como motivos para a ação, guiados por uma crença prática. Tal percepção ultrapassa a essência das coisas e exprime os interesses ativos daquele que percebe, em sua transação com aquilo que existe no ambiente. Mas até mesmo o sentimento, como o prazer, pode ser removido de seu assunto subjetivo, de onde induz a ação, e pode-se fazê-lo parecer qualidade essencial do objeto, na percepção contemplativa. O desejo de possuir a coisa desaparece, então, e a pessoa deseja apenas olhar.
Não se trata unicamente de arrumar as palavras numa frase ou a maneira de dispor as frases numa página; inclui modo de concepção do romance, genuína filosofia do romance, o ponto fundamental das distinções entre os romancistas. A personalidade do escritor de ficção não se lhe mede pelo poder imaginativo, mas pelo aproveitamento que faz da imaginação: pelo estilo literário que a imaginação adquire em suas obras e que as marca com selo indivisível do próprio eu, que lhe fornece os Traits pelos quais podemos reconhecê-lo sem maiores dificuldades em todos os seus trabalhos.
Bullough, em seu bem conhecido ensaio sobre a distância psíquica, trabalha também com a noção de desengajamento dos interesses práticos subjetivos, experimentando nossas próprias emoções geralmente subjetivas não como motivos interiores para a ação, mas como características objetivas de algo exterior.
Através do estilo, que se singularizam e por vezes se distanciam escritores como Ramos, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector. Não apenas pelos sinais exteriores de suas obras, não apenas pelo ambiente diferente em que movimentam seus heróis, não apenas pelo ambiente diferente em que movimentam seus heróis, não apenas pelas pré-ocupações di-(s)-semelhantes que manifestam como homens e como artistas, mas principalmente pela atitude que assumem perante este mistério chamado o romance, como forma de expressão de anseios interiores, de uma vocação, e também como técnica mais material de apresentar a interpretação desses anseios.
Ortega e Gasset informa-nos de como se deve tomar uma posição que nos desligue da realidade vivida em favor de uma distância espiritual. Fica-se numa relação tipo de “ultra-objeto”, com seu próprio conjunto de características estéticas específicas. São esses expressivos estilo e forma que se tornam a consideração dominante, ao invés da re-presentação dos valores da vida. Uma boa composição deve ter alguma relação com a realidade vivida, e essa é a condição de sua inteligibilidade, mas terá de possuir tão pouca semelhança quanto for possível. Fica a realidade humana sujeita à desumanização da Arte, na Arte.
Na teoria da empatia, Theodore Lipps e Vernon Lee, a ênfase recai novamente sobre o ego, que, aparentemente, se sente a si próprio dentro do objeto da percepção estética. Isso é realizado por uma espécie de desempenho subjetivo que, aparentemente, objetiva as atividades do ego no objeto. Graciliano Ramos apresenta-se com estilo mais profundo e mais sereno, e tanto mais sereno quanto mais profundamente penetra nesse terreno alucinatório que é no homem dentro de si mesmo.  
O valor estético é espécie de auto-gratificação, ainda que envolva desligamento interior ou distanciamento psicológico do ego quanto a si próprio. Graciliano Ramos empreende longas e tormentosas pesquisas no interior de seus personagens à procura das primeiras fontes dos seus atos e dos seus gestos e as idéias políticas que defende, antes como um cidadão que se revolta contra as injustiças sociais e que o obrigariam, coerentemente, a uma “interpretação” mais imediatamente social, mais rudimentar, mesmo, da vida e da inter-convivência em sociedade.  
Ramos bem confirma o conceito acima expresso de estilo, que é o de noção psicológica do estilo, e não noção gramatical ou sintática, como também a sua preocupação continuamente voltada para o que há de essencial no homem, para o que há nele de eterno, pouco se demorando no que nele existirá de transitório e de acidental. Beardsley aponta acertadamente para o fenômeno da profundidade estética, mas não se aproveita bastante disso, deixando de esclarecer que uma forma ou desenho, como observados, não são aquilo que é aprendido no espaço estético da composição.
É o homem que Graciliano tem em vista. Poderíamos, sem dúvida, observar como um corpo não funciona: ele é meio transparente de acesso para a Natureza que o cerca e para as outras pessoas, enquanto, como máscara, serve também para manter uma área de isolamento para a mente que o anima. Isso também se aplica a uma casa que é um lar. Ela obriga a pessoa integral, tanto o corpo quanto a mente, e funciona como espécie de corpo adquirido.
No primeiro romance, Caetés, ainda a medo e, propositadamente, não querendo aprofundar demais os seus passos, nos primeiros domínios da vida interior, estudando as reações psicológicas do personagem durante a evolução de um amor ilícito numa pequena cidade. De sua influência, Graciliano conserva apenas a forma exterior da frase, beleza bastante sim-pática de construção e  atitude irônica com relação aos personagens e aos seus casos.   
Qualquer estudo da forma e do conteúdo na Arte ficará prejudicado se tentar prosseguir sem referência ao assunto da Arte, ainda que esse último seja, fora de dúvida, estranho às características da obra de Arte. A forma de uma obra de Arte é o arranjo ou a disposição dos elementos (Valores Tonais) de seus meios e, não simplesmente, de seus materiais. Uma pessoa esteticamente insensível ou cega poderá notar (observar) o arranjo dos materiais no espaço físico, notas, cores, contornos sem notar as suas relações como elementos do meio da Arte, isto é, ele será cego quanto às suas relações como valores tonais no espaço estético ou quanto à influência de um sobre o outro, em tais relações.
Em Caetés, salienta-se com rigor uma maestria: a leveza simpática de construção. Na experiência de Graciliano, à medida que ele compõe, cada material é considerado como um pequeno e elementar objeto estético. Desse modo, o objeto estético composto não é uma espécie de Véu ou tela etérea situado entre o sujeito apreensor e a obra de arte. O objeto estético é a coisa material ordenada (obra de arte), a aparecer sob o aspecto categorial que ele possui a percepção apreensiva.
Nesta obra, o autor não é aquele que sofre com seus heróis, o homem que “acredita” no que inventa, como Julien Green exige do romancista, mas apenas o observador que está pouco acima e pouco fora daquelas miúdas cogitações e que por isso pode manter perante elas vivo e atrelado, o seu espírito crítico.
Caetés, sendo por esse lado obra malograda, é, ainda, um dos romances mais interessantes no Brasil; é um livro que de forma alguma desmente Vigor e a capacidade de criação de Graciliano.
Por quê?
Apenas uma palavra sobre estilo da obra de Arte. É uma espécie de forma? A distinção é delicada, mas existe. O estilo da obra de Arte é o estilo do artista, se ele está fazendo uma imitação. Se o autor ficou insatisfeito com o seu primeiro livro, não creio ter sido por causa da influência de Eça de Queirós, nem por não querer aprofundar demais os primeiros domínios da vida interior. Creio mesmo tal insatisfação se fundamenta na busca de seu estilo como artista e, portanto, o estilo da obra de Arte. Contudo, não dizemos que a forma da obra é a forma do artista. A forma pertence apenas ao lado  objetivo, o estilo atravessa a distinção subjetiva – objetiva.
Ramos sentiu, antes de ninguém, as fragilidades que lhe comprometeram o primeiro livro, mas elas não bastam para justificar a condenação sumária. E, apesar de tudo, um livro sincero, isto é, livro onde esse homem “tão prevenido e mesmo tão desconfiado”, como disse o poeta Augusto Frederico Schmidt, “(entre)mostrou” um pouco de si mesmo e deixou escapar mais simpatia humana do que a que comumente se permite.
O espírito do artista é o ambiente no qual, pela primeira vez, ele considera o assunto e seu modo de aprendê-lo, dá colorido e forma ao conteúdo de sua obra. Zola disse que uma obra de Arte é um pedaço da natureza visto através do temperamento do artista. A obra é concluída com emprego de materiais e meios cujo caráter também é mostrado na composição total, em seu estilo, e a porção da natureza, que é o assunto da obra, expressa em seu conteúdo, faz suas próprias exigências sobre aquele. Pode-se ver que o estilo é uma coisa mais ampla e sutil do que a forma. Pode-se isolar a forma da obra de Arte e caracterizá-la, sem dizer-se tudo o que pode ser dito sobre o estilo. O estilo é uma qualidade de forma global e, por ele, pode-se identificar o artista na obra.
Embora o episódio de amor se desenrole um pouco superficial, evitando o autor explorá-lo em todas as suas conseqüências literárias, evitando visivelmente enriquecer os personagens com uma capacidade de emoções em que o próprio romancista parece não acreditar, não há nenhuma dúvida de que poucas vezes o romance brasileiro poderá apresentar exemplo tão magnífico de verossimilhança  verdadeiramente convincente.
Publicando, em 1934, o seu segundo e maior romance, não se distanciou Ramos do interesse psicológico. O que houve a mais de Caetés  foi o corajoso aprofundamento de seu tema, foi o arrojo de mexer no que o homem tem de mais íntimo e de mais misterioso. Isso proporciona a S. Bernardo uma universalidade a que poucos romances brasileiros poderão aspirar.
A obra de Arte não é física, mas tampouco é mental. É um TERTIUM QUID, uma terceira espécie de alguma coisa, semelhante a um universalismo platônico. Essa é a posição do realismo lógico. Seu modelo é o universalismo do pensamento ou concepção, lógico, não temporal, nem localizado, como a triangularidade ou a vermelhidão. Por analogia com estes, pensa-se que a universalidade e mesmo a entemporalidade de uma grande obra de Arte podem ser explicadas e, como se vê o universalismo lógico com os olhos do intelecto, contempla-se a obra de Arte com os olhos da imaginação educada que, na contemplação estética, é bastante semelhante ao intelecto banhado pela emoção.
O drama econômico da vida social na região e os fenômenos típicos da propriedade só comparecem no livro porque são eles, justamente, que porão a funcionar o complexo Paulo Honório. O objeto do romancista é o personagem e não o ambiente, nem a sociedade. S. Bernardo não depende das transformações exteriores nem do sistema de vida na sociedade circundante para ser o que é. A pré-ocupação essencial do romancista não foi a de marcar literariamente os caracteres de uma sociedade, mas o caráter de um personagem.
É um romance psicológico no mais amplo sentido da palavra. Todo o romance existe em torno das reações íntimas de Paulo Honório, a sua luta pela propriedade, o seu amor infeliz, o fracasso de seu casamento, o seu isolamento e ruína. Só o vulto que o drama individual adquire, esfumando completamente os demais personagens e o ambiente (que jamais aparecem sem a presença do herói), comprovaria essa atitude do romancista, acentuando ainda em mais um livro o seu estilo.
Confessa Ramos:

Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, materiais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras... É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas, o resto é bagaço.

É a profissão de fé do romance psicológico: eliminar tudo o que não servir para dar do personagem uma idéia essencial. A ironia ainda acompanha o romancista, mas em dose extraordinariamente reduzida. Deixou de ser a atitude do romancista com relação a todos os personagens, para se restringir a um único personagem, justamente aquele que representa o avesso de Paulo Honório “seu” Ribeiro tenha sido tudo na vida, com dinheiro, lar e consideração social, e lentamente fora sendo despojado, até terminar como um martirizado guarda-livros em S. Bernardo.
Em A função da arte, Ernst Fischer, salienta que no mundo alienado em que vivemos a realidade social precisa ser mostrada no seu mecanismo de aprisionamento posta sob uma luz que devasse a “alienação” do tema e dos personagens. A obra de Arte deve apoderar-se da platéia não através da identificação passiva, mas através de apelo à razão que requeira ação e decisão. As normas que fixam as relações entre os homens hão de ser tratadas no drama como “temporárias e imperfeitas”, de maneira que o expectador seja levado a algo mais produtivo do que a mera observação, seja levado a pensar no curso da peça o encetado a formular um julgamento.
Ramos ainda mais acentua importância, que dedica ao processo psicológico de Paulo Honório, contra quem a menor nota de ridículo não é atirada, mesmo em suas manifestações mais brutais e menos simpáticas. Paulo Honório é personagem dramático. O seu drama não provém de acontecimentos externos, como o de “seu” Ribeiro, mas da constituição psicológica de homem que desde cedo construiu o seu próprio mundo com as mãos.
A razão de ser da Arte nunca permanece inteiramente a mesma. A função da Arte, numa sociedade em que a luta de classes se aguça, difere em muitos aspectos, da função original da Arte.
O romancista desrespeita Paulo Honório, que não soube enfrentar a vida, mas respeita o segundo, que venceu a vida e foi derrotado por assim dizer dentro de si mesmo. O guarda-livros perdeu o que tinha, material e moralmente, mas conservou intacto o seu tesouro íntimo, Paulo Honório em meio de uma prosperidade material que resistia aos maiores embates, viu-se lentamente desmoronar como se estivesse podre: “Estraguei a minha vida estupidamente... Creio que sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. É a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte”.  
Entre as duas paralelas marcadas por “seu” Ribeiro e por Paulo Honório pode-se identificar o interesse psicológico do romancista Ramos, a sua extratemporalidade, e, portanto, o seu problema temporal, o seu desligamento dos Problemas Temporais. Neste sentido de desligamento dos problemas temporais, pode-se colocar a questão da seguinte maneira: toda Arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento. Jamais devemos subestimar o grau de continuidade que persiste em meio às lutas de classe, apesar dos períodos de mudanças violentas e de revolução social. Como acontece com a evolução do próprio mundo, a história da humanidade não é apenas uma contraditória descontinuidade, mas também uma continuidade.
O problema que atormenta o escritor alagoano é o do Bem e do Mal. Não somente o Bem e o Mal que preocupam o romancista com uma persistência e com uma inquietude verdadeiramente calvinista, é também a indistinção moderna entre o Bem e o Mal, numa sociedade em que os valores se misturaram de tal maneira que se repete a história de Cristo e do Grande Inquisidor. É o Luís da Silva, de Angústia, quem nos vai colocar o problema.
O olhar de Graciliano se dirige para mais longe do que o espetáculo imediato dos homens formigando e defendendo as suas reivindicações de classe. Brecht observa que, numa sociedade, dividida pela luta de classes, o efeito “imediato” da obra de Arte requerida pela estética da classe dominante é o efeito de suprimir as diferenças sociais existentes na platéia, criando, assim, enquanto a peça vai sendo encenada, uma coletividade “universalmente humana” e não dividida em classes.
A fonte do problema, é uma fonte mais profunda e mais longínqua, encontra-se no ponto de intersecção originária desse feixe de preocupações mais ou menos divergentes que chamamos política, economia, religião, arte, ciência... Moralista, Ramos sabe que o mal reside principalmente no homem, e que somente será possível salvar a sociedade no dia em que pudermos reformar o homem.
Se desejamos, realmente, como o diz Walter Benjamin, construir ou ajudar a construir essa forma de conhecimento que poderia ser chamada de prática social artística, devemos estar cientes de que os conceitos têm um caráter operacional, submetidos a constantes variações às dos quadro sociais, às das transformações e modificações relacionadas às estruturas.
As idéias desse escritor comunista se encontram com a concepção católica do mundo.

Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embolados vivemos.

Esta reflexão de Luís da Silva é a mesma que preside a vida de Paulo Honório:

A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo, fiz coisas ruins que me trouxeram lucro.

O que origina o infortúnio do mundo é a indistinção entre o Mal e o Bem. O Mal dominou em aparência a vida do homem simplesmente porque este se encontra desorientado no meio da rede de confusões que a si mesmo entendeu.
Na origem de todas as perturbações, Graciliano Ramos não encontrou desajustamento econômico nem injustiça social mas uma confusão moral.
Dessa confusão moral decorrem todos os fenômenos que aparentemente se mostram de funda importância para a interpretação da sociedade contemporânea e para o diagnóstico de seus males e fixação de seus remédios. Não é a sociedade que devemos transformar, mas o homem.
A moral é história precisamente porque é modo de comportar-se de um ser – o homem – que por natureza é histórico, um ser cuja característica é a de estar-se fazendo ou se auto-produzindo constantemente tanto no plano de sua existência material, prática, como na de sua vida espiritual, incluída nesta moral. A moral só pode surgir – e efetivamente surge – quando o homem supera a sua natureza puramente material, instintiva, e possui já uma natureza social: quando já é membro de uma coletividade. O próprio Graciliano Ramos pretende a salvação de cada um pela salvação coletiva.
Os falsos valores se misturaram de tal modo com os valores legítimos que já nós sabemos o que é bom e o que é ruim, já não sabemos o que é o Bem e o que é o Mal. Quando estas categorias adversas se confundem, a primeira conseqüência é a de se tomar o Bem pelo Mal e o Mal pelo Bem. A corrupção se apossa dos homens, a sociedade é injusta.
O romance de Graciliano Ramos coloca à nossa frente, no mais amplo sentido da palavra, o problema moral, o problema do Homem, muito mais mitológico que político.
Vidas Secas, o último romance de Graciliano Ramos, foi publicado em 1938, quando a experiência do romancista e a sua segurança técnica tinham atingido ponto culminante. Há o estudo psicológico de Fabiano, o de Sinhá Vitória, o dos meninos, o de Baleia, o do Soldado amarelo. A paisagem comparece predominantemente no primeiro e no último capítulo, porque “Cadeia”, “Inverno”, “Festa” e “O mundo coberto de penas” são ainda estudos psicológicos cuja evidência não precisarei demonstrar.
A concepção pessimista de Graciliano Ramos abranda-se em Vidas Secas: sentimos que a sua atitude de descrença se curva à evidência de vidas que não se tornaram possessas do mal e as quais, por isso mesmo, o romancista não nega o benefício da salvação. É o segredo do final feliz de Vidas Secas: o livro que seria aparentemente o mais desesperado, porque preso à fatalidade implacável de uma natureza torturadora, termina como numa aurora, a felicidade e o conforto surgindo aos personagens em plena caminhada na poeira calcinada pelas secas e pelos sofrimentos.
Todos os livros de Graciliano Ramos terminam na desgraça irremediável, menos Vidas Secas cujos personagens sabem tirar da maior desgraça o alimento para as suas esperanças. Uma suave luz de poesia difunde-se pelas últimas páginas de Vidas Secas. É que nesse romance o Bem e o Mal não se confundiram. O sofrimento físico dos personagens lhes manteve intacta a rude formação moral.
Costurando toda a exploração da obra de Graciliano Ramos, Estilo e Estética, uma obra de Arte é uma coisa material composta para ser aprendida como objeto estético. Essa nação, por si mesma é bastante vazia, mas adquire alguma substância por ligação com o tratamento prévio dos materiais, meio, conteúdo, forma e assunto de uma obra de Arte, juntamente com o que foi dito sobre a apreensão como modo esteticamente relevante de percepção das coisas.
É verdade que a função essencial da Arte para uma classe destinada a transformar o mundo não é a de fazer mágica e sim a de esclarecer e incitar à ação; mas é igualmente verdade que um resíduo mágico na arte não pode ser inteiramente eliminado, de vez que sem este resíduo provindo de sua natureza original ou Arte deixe de ser Arte.



[1] Este pequeno ensaio fora escrito em setembro de 1998. Confesso haver hesitado bastante em publicar este texto acerca da obra de Graciliano Ramos. Fazê-lo, após onze anos de sua criação, é responsabilidade grande, pois que o amadurecimento e crescimento da escrita e da visão sofreram mudanças no estilo, na linguagem.  Ainda mais que naquela época, 1998, estava ainda experimentando escrever ensaios, comentários. Nada modifiquei de meu original, tirei apenas algumas “gordurinhas”, uso inadequado do artigo indefinido “um”, “uma”, “uns” e “umas”. Surgirá oportunidade no futuro de outro ensaio a respeito de Graciliano Ramos. 

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