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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

SUBLIME REFLEXÃO MORTA Manoel Ferreira Neto.


Não tenho as maneiras súditas – se é algo por que tenho profunda ojeriza é fazer parte de rebanho -, nem as curvas reverentes de outros indivíduos, tiro o chapéu às caveiras, mas não reverencio os de raça e estirpe; exprimo-me com a graça de um advogado benévolo, libertando inocente num tribunal. Pode esta expressão não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso que se agradeçam.
Se, à primeira vista, pareço fazer obséquio aos homens, propondo ser benévolo, complacente com estas palavras com que inicio a dirigir-lhes acerca de sublime reflexão que me perpassa o íntimo, deixando-me excitado e extasiado, nem antes, nem durante, nem depois das palavras, mostrar no rosto a menor comoção, embora não cumpra ser frio e calculista; tenho até umas sombras de riso cáustico, um riso de meu uso particular e singular, que imita a autenticidade e originalidade, tanto em momentos fáceis, alegres e felizes, quanto em outros de insatisfação com a mediocridade e mesquinharia da natureza humana, quando mofo de alguém, quando inspirado, de modo hermético e ferino, noutras situações, ferino e rasgado. A natureza humana é digna de dó e pena.
O mais singular é que, se o relógio pára, faltou-lhe algo, dou-lhe corda a fim de que nunca deixe de bater, e eu possa contar todos os segundos mortos, todos os instantes perdidos, ficados para trás, jamais possíveis de serem resgatados. A batida presente é efêmera, fugaz, num átimo morre, vem a futura, quase nem tem tempo de ouvir-se, ouvi-la, é já passada, assim consecutivamente; o relógio, o objeto-relógio permanece no seu mesmo lugar, segundos, minutos, horas passam num piscar de olhos. Para sempre, ali, naquele lugar específico. Na minha alcova, sobre o guarda-roupas, ao lado de uma porcelana de dois cisnes.
Sui generis é que, se a mão fica inerte, suspensa, à espera que o espírito envie outra palavra grávida de idéias profundas, de sentidos e significados múltiplos, de intenções ambíguas, ad-versas, contraditórias, dialéticas, emoção ou sentimento quaisquer fazem-lhe movimentar-se, delineando letras, sílabas, formando palavras. Criações, re-criações, in-venções há que se trans-formam, trans-mudam, trans-cendem-se, acabam, o mesmo que lutar por levar uma pedra ao topo da montanha, com o propósito de lá colocá-la, instalá-la, mas, único passo faltando para isto, rola para baixo, tendo de re-começar tudo; as palavras, juntamente com seus sentidos e significados, morrem; a inspiração é definitiva e perpétua.
O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há-de ter um relógio na algibeira, no alforje, se se quiser, para saber a hora exata em que morre. O último escritor, ao despedir-se das letras vivas e grávidas, há-de ter uma pena em mão, entre os dedos, se se quiser, para registrar o instante exato em que a inspiração morreu, a criação dependurou a engenhosidade no cabide do passado, a intuição arregaçou as mangas, a percepção esvaeceu-se nos horizontes do efêmero e etéreo, a sensibilidade escafedeu-se nos liames do nada e vazio.
As fantasias tumultuam-se cá dentro – nada fácil dirigir-me aos homens, através de palavras, nelas emoções, sentimentos, desejos, vontades, sem inspiração, percepção, sensibilidade, sem sentidos, significações, sem metáforas, símbolos, signos, através de caracteres mortos, sem tempo; vêm umas sobre outras, à semelhança de beatas, devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouço as batidas do relógio, instantes perdidos, não vejo as letras mortas na página, mas os segundos que hão de vir.
O meu pensamento, ardiloso e traquinas, salta pela janela fora e bate as asas na direção da eterna quimera, o silêncio da língua que pode re-nascer a expressão verdadeira, verso ardente como o amor, prosa de prazeres que parece dizer a cada letra que vou ter um instante menos de vida. No peitoril da janela, encontro o prólogo de uma vida de palavras, de uma vida de delícias em busca de meia dobra de página, trêmula de medo e angústia, único freio de uma paixão sem freio, única rédea de fantasia sem fio de cordão grosso, único cabresto sem limite de segurança.
Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor pelas letras é daqueles; brota com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro única batida do relógio paga à farta e de sobra o tique-taque soturno, vagaroso e seco o instante da vida que outra coisa não é senão o tirar de dentro o íntimo das esperanças e sonhos. Imagino, então, um velho diabo, sem haver tido dons e talentos, sem qualquer condições de saber o que são pensamentos, idéias, metido nas letras, acreditando estar expressando, na verdade burilando caracteres conforme seus sentimentos e emoções mortos, mas nada escrevendo ou significando, sentado entre a vida e a morte a tirar do nada o vazio.
O amor... Entrei por outros becos, trilhei algumas alamedas outras; irrita-me fundamentar as idéias que me surgem, como se o único interesse fosse delinear um tratado sem precedentes de linguagem e estilo, fosse esclarecer as pré-fundas das palavras; tergiverso, sou capaz de registrar coisas bem ad-versas – daquelas que o leitor logo questiona: “o que tem a ver tique-taque de relógio com o amor pelas letras?” Às vezes, encontro resultados ainda mais ricos e profundos do que se me encafurnasse pela lógica e ordem das coisas. Cabe ser perspicaz com a leitura, ter olhos de lince, enfiar o pince-nez  na página adentro.
Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos; na juventude, ouvia dizer que o amor só é verdadeiro se houver correspondência entre as partes, caso contrário é fantasia ou quimera. Verdade ser bastante doloroso amar e não ser amado, ser amado e não amar, o sofrimento é angustiante, até os ossos doem, isto quando a carne não perece de frio, o coração congela o sangue.
Então, se me sento à mesa do escritório, ligo o computador, coloco CD de música, iniciando a escritura, sinto mais presente o amor entre mim e as letras, a correspondência é divina, perde-se a música em mim, esta se perde nas letras e idéias, a inspiração se re-vela mais profunda, o ritmo mergulha na poesia, a lírica desperta os desejos de mergulhar nos interstícios do espírito, e este voa livre em busca, se é noite, da aurora, se é manhã, do crepúsculo. A música foi sempre uma de minhas inclinações, e, não fosse temer o poético e acaso o patético, diria que é hoje uma de minhas carências. Quis aprendê-la na mesma época em que comecei de fazer datilografia, mas alguém dissera ou tocava violão ou datilografava, violar não era datilografar, datilografar não era violar, se violasse isso, nada faria. Escolhi datilografar, o amor pelas letras era bem maior. Agora, vivo do que ouço aos outros. Escrevo à luz de musicalidade, ritmo, arranjo.   
Recebi de amigo, músico e poeta, uma missiva, caligrafia de esbugalhar os olhos, cair o queixo, desejo incólume de treinar em caderno de duas linhas para melhorar os meus digníssimos garranchos; estava solitário em seu quarto, deitado na cama de solteiro, ouvindo músicas; para escapar às dores e sofrimentos, lembranças e recordações de outrora, momentos felizes misturados com outros angustiantes, decidiu sentar-se à mesinha, re-velar o que a música despertava em seu íntimo, como ela fluía em suas entranhas, melhor ainda, como suas entranhas fluíam ao ritmo dela, como a musicalidade aflorava o que estava trancafiado a sete chaves. Recebi a missiva. Divina. Maravilhosa. Li-a num só fôlego, esqueceu-me até o cigarro queimando no cinzeiro, não tive qualquer necessidade de tragar fumaça. Quem me dera se, como ele, pudesse descrever as notas da música, conciliadas às emoções e sentimentos que afloram em mim, inscreveria a vida na trans-cendência, só esta matéria ridícula, de carne e ossos, ficaria na terra, esperando o momento de ser transportada para os sete palmos que lhe são de fato e direito. Senti inveja? Não. Não sei o que em verdade é isto, conheço apenas o significado dicionarizado dela, li alguns tratados bem interessantes no que tange às suas conseqüências e efeitos catastróficos. Senti ciúme? De modo algum. Senti-me carente da profundidade, da correspondência amorosa entre as letras e a música. Saí de casa, terminada a leitura da missiva do músico-poeta, tinha muitas coisas a serem resolvidas, ficaria o dia inteiro fora de casa, não traçaria nenhuma letra, se se quiser, fonema, na página branca de papel. Cheguei a casa por volta das oito horas da noite, ligando o computador, colocando CD de música, tomando em mão da missiva, lendo um sem-número de vezes. Só perto de uma da manhã comecei a pescar no vazio, urgia que fosse dormir. Todo o tempo da rua, tratando de meus negócios, da casa e da cama, foi consumido em repetir versos de Bob Dylan: “How many seas/must a white dove sail/ before she can sleep in the sand?”, às vezes mentalmente, às vezes cantados em alto e bom som.
Se houvesse aprendido música, tocar, não creio que tenha dons, tivesse-os para compor, apenas para executar, tocaria agora ou comporia, sob o efeito da missiva do músico amigo? Quem sabe compusesse uma sublime lírica de reflexão morta?! Quem sabe executasse Deus lhe pague, de Chico Buarque?
Dormi o sono dos real-izados, felizes com os resultados adquiridos com uma leitura musical de letras, com efeito o amigo não escreveu uma lírica imaginária de literatura à luz da solidão de seu quarto, de suas experiências em busca da sublimidade. Tive sonhos. Vivi-os extasiado e estesiado. Não me lembra deles. Estão inscritos no inconsciente divino, estão inscritos nas estrelas cadentes de minhas carências profundas.
Aquele 06 de junho (ontem) há de ficar-me na memória, mais fixo e mais claro que outros, devido à missiva do amigo, músico e poeta. Não escrevo tudo, faltam-me dons e talentos, as letras amam-me verdadeiramente, entregam-se inteiras a mim, não sei corresponder a este amor, quem me dera a habilidade de real-izar a trans-cendência delas. Não vou cair naquela mediocridade, mesquinharia, imbecilidade, idiotice de Bruna Lombardi, quando disse numa de suas entrevistas: “Não usei as letras. As letras me usaram”, o que mostra e demonstra ser ela uma verdadeira “Maria Parafuso”; aliás, o que concordo em gênero e espécie, disse outro músico e poeta de minhas relações sensíveis: “Bruna Lombardi é pior que Faustão, não tem a menor noção de palco”.
Terei engolido um cão filósofo? Não é novo para mim comparar os mortos da reflexão sublime com a sublimidade da reflexão morta.    


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