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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

SARTRE E A TRADIÇÃO JUDAICA - Manoel Ferreira Neto


Conhecendo bem os judeus[2], Paulo dá testemunho de que os judeus têm conhecimento (gnosis) de Deus, mas carecem desse conhecimento mais penetrante (epígnosis) que permite discernir com transparência os desígnios divinos[3].
O paralelo Adão-Cristo desempenha um decisivo papel em Rm 5,12s. Mas fora utilizado por Paulo num escrito anterior: 1Cor 15,21-22.45.49). Sobre a origem da tipologia cabem diversas hipóteses: Bultmann aponta a influência da antropologia gnóstica, perceptível sobretudo na oposição psíquico-pneumático. Lengsfeld, sem excluir a repetição de “representações gnósticas”, destaca a incidência do pensamento apocalíptico judeu, no qual o papel de Adão e sua repercussão negativa sobre toda a humanidade era um lugar-comum.
Paulo estabelece o fato da ignorância dos judeus acerca da justiça de Deus. O apóstolo põe em contraste duas atitudes com respeito à justificação. A justificação mediante a fé em Cristo, como um dom que vem de Deus e que se aceita[4]; e a justificação que se pretende alcançar mediante a prática das obras e em virtude dos próprios méritos. Os judeus, querendo alcançar a justificação pelas obras[5], estabeleceram sua própria justiça e não se submeterão à justiça de Deus, revelada no Evangelho (Rm 1,17).
No tangente à atitude de Sartre de recusar o prêmio Nobel da Paz da Academia Sueca. Dissera ele que era homem livre, não fazia parte de instituições. As palavras eram não a sua justificação, mas a busca de fundamento, portanto compreensível a sua atitude: não se submeteu ao juízo e reconhecimento do que vinha de cima, o juiz era Deus – Sartre escolhera escrever para Deus -, eram os leitores, estes sim reconheciam os seus méritos, o garçom de café sabia que ele escrevia, era escritor. 
Referimo-nos anteriormente acerca do sucesso d´As palavras desde a sua publicação, Sartre fora homem que viveu metade da vida sob as luzes da extrema notoriedade. A obra significava a des-mistificação. Se ele aceitasse o prêmio que lhe estava sendo concedido, permaneceria o mito, a autenticidade que construíra ao longo de sua carreira seria posta em dúvida. A justificação de sua atitude se fundamenta nisso.
Não é certo apresentar a história judaica no período cristão como uma pura história de sofrimento. Historiadores judeus modernos demonstraram: em muitos períodos ela foi uma admirável história de sucessos. Até o início das cruzadas, vigoram, de modo bastante amplo, relações de boa vizinhança entre os cristãos e a minoria judaica que o império cristão soube, em muitos pontos, afirmar-se melhor do que qualquer outra minoria ou pequeno povo.  
Jean-Paul Sartre diz a respeito do sofrimento:

 “Deus haveria de acabar com meu sofrimento; eu seria uma obra prima autenticada, garantindo minha parte no concerto universal, teria esperado, pacientemente, que ele me revelasse seus desígnios e minha necessidade”.
E faz questão de precisar:
 “Eu pressentia a religião, esperava-a, seria o remédio. Se m´a tivessem recusado, eu a inventaria. Não m´a recusavam...”.

 Ao contrário, estava a sua disposição, mas sob formas tão insignificantes que ele teria muita dificuldade em achar ali o remédio para a sua própria insignificância. Era-lhe mister ser humano.
Dizíamos anteriormente que a tentação do bastardo, incidindo nosso olhar no personagem Goetz, é conquistar seu ser no nível de seu mal. A liberdade não é faculdade neutra que a pessoa possa ter e carregar consigo como algo de distinto de si, mas é propriamente básica do existente pessoal, que na ação temporal, já acontecida ou por acontecer, experimenta-se como autopossessão.
Neste ângulo de visão, o agir de verdade, por que tanto sofre devido à busca do homem “ponto final”, “não era agir segundo ele próprio”, nem tentar se integrar em sua liberdade, mas sim suplantar este “si” em si mesmo, o que mostra a dimensão da “liberdade transcendental”.
Experimentar-se como autopossessão, como realidade porque é responsável e deve ser responsabilizado, até que a resposta pessoal do sujeito à infinita incompreensibilidade seja dada por este ser em sua transcendência e como tal seja acolhida ou rejeitada.   
Em verdade, Goetz não confessa sua necessidade de ser Deus: ele se diz instrumento de Deus.

“O Senhor me escolheu para apagar nosso pecado original... Deus me incumbiu de deslumbrar e eu ofuscarei. Eu sangrarei luz. Sou um corpo ardente; o sopro de Deus me atiça, eu queimo como chama forte”[6].

O pecado habita o homem, está alojado dentro dele e age por ele: “mas então, já não sou eu que faço, e sim o pecado que mora em mim”. Superando o “si” em “si mesmo”, apagando o pecado original, alcança-se a liberdade transcendental.
Duas vezes São Paulo formula este diagnóstico angustiante (v. 17,20). Assim se compreende o “incompreensível” (v. 15) de minha atitude; esse “fazer o que não quero” revela um estado de verdadeira e própria alienação. E Sartre afirma: “faço o que quero e quero o que faço”. Paulo: “mas sinto nos membros outra lei, que luta contra a lei do espírito e me prende à lei do pecado” (v. 23).
A tentação demiúrgica é evidente. Goetz se toma pelo próprio Deus, ou aquele que ousa dizer-se mandatário de Deus, para impor amor aos homens. Goetz, nessa cena, se encontra no máximo do heroísmo, da exaltação e do mito, quando afirma:

“Em verdade, eu digo que é suficiente que um homem ame todos os homens com um amor absoluto para que este amor se propague, de homem a homem, a toda a humanidade”[7].

Na Cena V, do Segundo Ato, IV Quadro, Goetz se dirigindo a Nasty:

“O Bem é o amor, está claro. Mas a verdade é que os homens não se amam. E que é que os impede de se amarem? A desigualdade das condições sociais, a servidão e a miséria. Urge portanto suprimi-las. Até aqui estamos de acordo, não é verdade? Nada de surpreendente nisto tudo: aproveitei bem as tuas lições. Sim, Nasty, pensei muito em ti nestes últimos tempos. Simplesmente, tu queres adiar para mais tarde o reino de Deus: eu, sou mais astuto: encontrei um meio de o fazer começar imediatamente, pelo menos num canto da terra: aqui. Primeiro passo: abandono as minhas terras aos camponeses. Segundo passo: nesta mesma terra, organizo a primeira comunidade cristã. Todos iguais! Ah! Nasty, sou um capitão: travo a batalha do Bem e pretendo ganhá-la já e sem efusão de sangue. Ajuda-me, queres? Tu sabes falar aos pobres. Os dois, juntos, reconstruímos o Paraíso, pois o Senhor escolheu-me para apagar o nosso pecado original. Olha, encontrei um nome para o meu falanstério: vou chamar-lhe a Cidade do Sol. Que há? Ah! Cabeça de mula! Ah! Desmancha-prazeres! Que tens ainda a censurar-me?”[8]

No Segundo Ato, V quadro, Goetz se dirige à mulher, após esta dizer: “Ainda não pensamos nisso. Nem sequer sabemos o que é”:

“Vós sabeis que Deus nos ordena que amemos. Só que, até agora, isso era impossível. Ainda ontem, meus irmãos, vós éreis demasiado infelizes para se pensasse em pedir-vos amor. Pois bem, eu quis que não tivésseis desculpa. Vou torná-los gordos e anafados e vós amareis, co´a breca, exigirei que ameis a todos os homens. Se renuncio a comandar os vossos corpos é para guiar as vossas almas, pois Deus ilumina-me. Eu sou o arquitecto e vós, os operários. Tudo é de todos, as ferramentas e as terras em comum, acabaram-se os pobres, acabaram-se os ricos, acabou-se a lei, a não ser a lei do amor. Seremos um exemplo para toda a Alemanha. Vamos, rapazes, tentamos o golpe? Não me desagrada meter-vos um pouco de medo ao princípio: nada mais tranqüilizador do que um bom velho diabo. Mas os anjos, meus irmãos, os anjos são suspeitos. (A multidão sorri, suspira e agita-se.) Até que enfim! Até que enfim que me sorriem”[9]

São João da Cruz, em consonância com a tradição mística cristã, afirma que, nos estágios finais da experiência de oração, o encontro com Deus se dá sem mediação[10] de nenhum conceito ou imagem; por isso ele foi chamado de o “Doutor do nada”. 
A partir do instante em que o homem suplanta o “si” em “si mesmo”, à medida que está entregue em si mesmo o objeto do ato de sua liberdade propriamente dita, ato que é uno em suas origens e afeta o todo da existência humana, o suplantar o “si” em si mesmo[11]: pode-se dizer que o homem tem uma salvação.
Em As Palavras, assim nos diz sobre o militante, o místico:

“Militante, quise salvar-me por las obras; místico, intente desvelar o silêncio do ser por um rumor encontrado de palavras y, sobre todo, confundi as cosas com suas nombres: esso es creer. Estaba alucinado. Mientras duró, consideré que no tenia problemas. A los treinta años logré una jugada maestra: escribir en La náusea – y puede creérseme que mui sinceramente – la existencia injustificada, salobre de mis congéneres y de poner a la mia a salvo. O era Roquentin, mostraba en él, sin complacencia, la trama de mi vida; al mismo tiempo era yo, ele elegido, analista de los infiernos, fotomicroscopio de cristal e de acero inclinado sobre mis propios jarabes protoplásmicos. Más tarde expuse alegremente que el hombre é imposible; imposible yo miesmo, difería de los otros sólo por el mandato de manifestar esta imposibilidad que, como consecuencia, se transfiguraba, se volvía mi más íntima posibilidade, o objeto de mi  misión, el trampolín de mi gloria”[12]

Há na tradição judaico-cristã, na tradição budista e em todas as grandes tradições místicas critérios de discernimento. Conforme o cristão-budista Paulo César Lopes,
 “A pedra de toque de todos eles está presente numa afirmação de Francisco de Sales: para sabermos se nossa experiência mística é verdadeira, não devemos ficar olhando para ela mesma, para o modo e a forma como ela se dá. Devemos olhar para a nossa vida posterior; se ela nos leva a ser pessoas mais amorosas, justas, solidárias, então sim, é autêntica experiência mística”[13].

Na tradição budista, durante a nossa caminhada é fundamental transformar nosso pequeno “eu” limitado até alcançar o “nada”, o meu “eu” não condicionado. A explicação teórica de tal transformação é um problema complexo e difícil, mas aquilo que realmente importa é o caminho que temos de percorrer para chegar ao “nada”.
Caminhar rumo à anulação do próprio “eu” significa não fundamentar o meu raciocínio ou o meu juízo sobre o meu “eu”, mas seguindo as indicações do Caminho. O caminho rumo ao nada equivale, portanto, a anular a nós mesmos a cada momento e isto será possível se, a todo instante, conseguirmos dar valor ao nosso caminhar.
Dalai Lama adverte:

“Sem o fundamento apropriado do caminho comum, uma pessoa absolutamente não pode fazer nenhum progresso no tantra. Sem o desejo compassivo de obter a iluminação com o objetivo de conduzir todas as pessoas para a liberdade, o tantra torna-se apenas uma recitação de mantra”[14].
A fé deve estar baseada na experiência testada e aprovada, conseqüentemente, o homem deve, constante e deliberadamente, tentar evitar o tipo de percepção que o conduz a ver falhas no mestre espiritual, as quais, na verdade podem ser suas próprias projeções, e tentar as grandes qualidades do mestre espiritual.
Tomando em “con-si-deração” o pensamento de Sartre acerca do “tornar-se valor”, da experiência e, baseando a pessoa na concepção pré-ontológica (ou espontânea) que o homem tem de si mesmo, descobriremos que o projeto fundamental ou escolha original do homem não pode ser senão o “projeto-de-ser”.
O homem é desejo de ser. O para-si[15] é nele mesmo a sua própria falta de ser e o ser que lhe falta é o em-si, em busca do qual o para-si anda empenhado. Colocado continuamente entre o “em-si” que ele aniquila por definição e o “em-si” que projeta ser, o para-si é nada. O em-si corresponde verdadeiramente aos fins da anulação que me constitui.
Conforme Hegel, a experiência é movimento dialético que a consciência efetua em si mesma, a um tempo no seu saber e no seu objeto, fazendo surgir diante dela um novo objeto verdadeiro. O movimento se torna necessário devido à ambigüidade do verdadeiro nesta experiência. A consciência sabe alguma coisa: este objeto é a essência ou o em-si. Porém, a consciência reflete sobre si mesma, e então o saber se torna um objeto para ela. O primeiro objeto muda então: deixa de ser em-si e passa a ser algo que é para-a-consciência. O objeto da consciência fica sendo o seu saber, ou seja, a experiência que a consciência faz do objeto. 
O homem é desejo de ser em-si, isto é, desejo de ser ele mesmo o seu próprio fundamento. O desejo de ser exprime-se e atualiza-se como desejo de tal maneira de ser, e, como tal, abre e impõe simultaneamente à liberdade um campo absolutamente ilimitado. Exprime uma estrutura de ser universal, pela qual virá a ser definida a “realidade humana da pessoa”. 
Em Sartre, o nosso caminhar busca a adesão ao perceber-me como sujeito e pessoa, percebendo-me como ser livre, dotado de uma liberdade que não se refere primariamente a uma ocorrência psíquica isolada, mas de uma liberdade que se refere a um sujeito inteiro e uno na unidade de sua realização em toda a sua existência.
Segundo Karl Rahner, “o genuíno conceito teológico da salvação não se refere a uma salvação futura que se precipita como que inesperadamente sobre a pessoa como se vinda de fora”[16].     
Se a experiência mística nos leva às nossas origens, à autenticidade, à coerência com a nossa intimidade e as nossas atitudes, o sentimento de síntese de nossas dimensões corporais, psíquicas, da alma, do espírito nos fundamenta e nos revela o Ser do sentido, daí é que se nos dá podermos re-criar o nosso destino a partir das experiências e do vivido, do conhecimento e da contemplação, a ação de tornar-se ser humano. 
O cristianismo, a tradição judeu-cristã, lê num código religioso, fala de pecado original.
Transcrevo o diálogo entre Goetz e Heinrich, no Segundo Ato, V Quadro, Cena II, quando este revela suas “culpas”, “pecados”:

“Heinrich – Não voltarei a Worms nunca mais e nunca mais direi missa. Já não pertenço à Igreja, bufão. Foi-me retirado o direito de celebrar os ofícios e de administrar os sacramentos.
Goetz – Quem podem eles censurar-te?
Heinrich – Ter sido comprado, para entregar a cidade.
Goetz – Mas é uma mentira infecta!
Heinrich – Essa mentira, fui eu quem a criou. Subi ao púlpito, confessei tudo, diante de todos: o meu amor pelo dinheiro, o meu ciúme, a minha indisciplina e os meus desejos carnais.
Goetz – Mentiste.
Heinrich – E daí: Espalhava-se por toda a parte, em Worms, que a Igreja abominava os pobres e me dera ordem para os entregar ao massacre. Era preciso fornecer-lhes um pretexto para me renegarem.
Goetz – Pois bem, expiaste as tuas culpas.
Heinrich – Sabes que nunca se expia!”[17]
Karl Barth entende por “pecado original” o estado de pecado, que afeta o homem desde sua origem. Para sermos mais precisos, denominemos esse estado de pecado original (passivo) (pecatum originale originatum), em oposição ao pecado original ativo (peccatum originale originans); assim designamos o fato, em virtude do qual o homem entra no mundo do afeto pelo pecado original passivo[18]; mais claramente podemos denominar esse fato de “queda”.
“O meu inferno são os outros”. Transcendência, fundamentalmente, é a capacidade de romper todos os limites, superar e violar os interditos, projetar-se sempre num mais além. Neste sentido, o inferno é o olhar, que lança sobre si mesmo, em nome dos outros, aquele que sabe que vai morrer breve.  É somente pela consciência dos outros (no sentido do olhar) que cada um se acha atacado.
A leitura[19] antropológica e filosófica descobre aí o ato supremo do ser humano: “Você não pode comer da fruta proibida; se comer, você morre”[20]. O prazer de violar o interdito, de fazer a coisa proibida. O homem viola, descobre a sua realidade de transcendência, se transforma em ser humano. Eis a revelação da essência da liberdade. 
A verdadeira fé inclui opção. Jean-Paul, surpreendentemente para quem só o conhece existencialista ateu, tem reflexões interessantíssimas sobre o assunto. Ele afirma: “Não se é um ser humano enquanto não se encontra alguma coisa pela qual se está disposto a morrer”.  Assim até o ateísmo desse grande intelectual faz parte de sua fé[21]. Fé que ele viveu com grande autenticidade, com uma coerência a toda prova, entregou-se por inteiro à busca do ser-em-si, isto é, da essência.
No prefácio do livro Le sens cachê des rites mortuaires, Louis-Vicent Thomas afirma que

“tudo se passa como se, desde a origem, o homem pensasse na eventualidade de uma vida contínua depois da morte. O rito funerário poderia constituir perfeitamente a brecha antropológica, o aspecto pelo qual o homem tem acesso ao humano”[22].
Jean-Paul não teve que inventar a idéia da reabilitação da espécie humana pela literatura: ela lhe foi sugerida pelo avô, que a tinha tirado de um mito burguês[23].
Quando o homem deixa de se sentir possuído pela projeção de sua própria transcendência, sob a forma de um Absoluto “de cima”, seu primeiro movimento só pode ser a interiorização radical do Pai e a concepção de que ele lhe deve pagar este absoluto renascimento com sua própria vida. Transformado em filho de ninguém, e querendo ser, desde então, o Filho de Deus, é pelo sacrifício supremo – desde logo colocado no horizonte de sua vida – que lhe é necessário fazer anunciar sua ressurreição e merecer esse prodígio.
Filho de Deus se torna o título daquele em quem a unidade essencial entre Deus e o homem apareceu sob as condições da existência. Aquilo que é essencialmente universal se torna existencialmente único. Mas essa unicidade não é exclusiva.
Esse uso do símbolo “Filho de Deus” transcende tanto o uso judaico quanto pagão do termo. Ser Filho de Deus significa representar a unidade entre Deus e o homem sob as condições da existência e re-estabelecer essa unidade em todos aqueles que participam de seu ser.
Tanto na tradição cristã como na tradição hindu[24], é essencial ressuscitar antes de morrer. Não se trata de ressuscitar depois da morte... Jesus ressuscitou “antes” de morrer. O termo evangélico “vida eterna” explica isso: se existe a vida eterna, ela o é antes, durante e depois! A vida eterna é a dimensão de eternidade que habita o próprio âmago de nossa vida mortal.
Lúcio Cardoso, curvelano, em seu romance Crônica da casa assassinada, através de seu personagem André, assim pergunta acerca da morte:
“... meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor...”[25]

Na verdade, é no tempo que se revela a eternidade, a qual propriamente não protrai este tempo para “um além’ do tempo que vivemos em nossa vida espácio-temporal, mas antes suprime precisamente as peias do tempo, à medida que se desprende do tempo que se tornou monótono, a fim de que em liberdade possa fazer a definitividade.
A eternidade não é um modo do tempo puro a perdurar de maneira imprevisivelmente longa, mas um modo da espiritualidade e da liberdade que se realizam no tempo e, em vista disso, só a partir da correta compreensão do tempo é que se pode compreender aquela.
Conforme Emmanuel Levinas, na morte “o sujeito é confrontado com algo que não se deixa traduzir em termos de luz, isto é: que é refratário à intimidade do eu consigo mesmo” (TA, 56). Na morte se anuncia algo que transcende radicalmente o sujeito. Não é pela morte que o sujeito se desfaz perdendo o controle sobre o ser anônimo? Como pode o eu ser salvo na transcendência? Entretanto, uma relação com a exterioridade radical que não abole o sujeito se realiza na relação com outrem, encontro de um “rosto que dá e retira outrem. O outro ´assumido´ é outrem” (TA, 67). O caráter temporal dessa relação não é o futuro como puramente imprevisível, mas o futuro ligado ao presente. A relação com outrem realiza o tempo em plenitude.
Pensando a morte, ainda em Dalai Lama, após a morte, o homem entra no estado intermediário, o bardo. O ser do estado intermediário tem uma visão tão poderosa que pode ver através de objetos sólidos e é capaz de viajar para qualquer lugar sem obstáculos.
Vista na perspectiva do para-si, ou seja, na perspectiva da minha transcendência, da minha subjetividade auto-realizadora, minha morte é um absurdo. Pela morte minha transcendência se vê “simplesmente” quebrada: “morremos sempre de quebra”[26]. Meu poder-ser se solidifica na compacta densidade do em-si. Isso não pode dar sentido algum à vida; ao contrário, a morte priva a vida de toda significação.
Analisemos à luz do Outro. Um indivíduo que não arriscou a vida poderá ser reconhecido como pessoa, porém não atingiu a verdade deste reconhecimento enquanto reconhecimento de uma consciência-de-si independente. Quando arrisca a vida, o indivíduo visa a morte do outro[27]: a vida alheia não vale mais que a própria. O Outro tem de ser posto em perigo de vida para suprassumir sua alteridade: assim deixa de ser consciência perdida nas escórias dos muitos modos de ser e da vida e adquire a pureza do ser-para-si, como negação absoluta. 
Minha morte representa o triunfo definitivo do outro sobre mim[28]. Enquanto vivo, estou em condições de transcender minha transcendência com meu olhar, mas a morte vem tirar-me essa capacidade de autodefesa.
 Não poderíamos aqui começar a repensar a pedra angular do existencialismo sartreano, “a existência precede a essência”, e com o sentido que ela traz em si, a ressurreição, a vida eterna, o que ela nos faz aproximar, não intelectualmente, mas o vivido, o experienciado, do ser humano, este que só encontra o fundamento de sua existência quando está disposto a morrer por algo?
Declara Sartre:

 “Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana”.

A essência é a “vida eterna”[29], que habita o âmago da vida mortal, a realidade humana. A existência, nesse ângulo de análise, precede a vida eterna, e no cristianismo é o Amor o caminho a ser buscado para que se estabeleça.    
É necessário haver sentido nesse sacrifício e que esse sentido seja universal, para que apareça realmente substituída a ausência desse Outro[30] (ao mesmo tempo Pai e Espírito), cujo papel era exatamente o de figurar noutra parte, o ser do Sentido. Assim, cada homem, nesse primeiro movimento[31], se acha estimulado a tomar a seu cargo o Homem e, na esperança de renascer ele próprio, a viver sua própria morte, em nome de todos. Diz Sartre em sua Conferência O Existencialismo é um Humanismo: “... queremos dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele (o homem) escolhe todos os homens”[32].
Enfatizamos aqui o “tornar-se-autêntico-sendo-responsável-pelo-outro”. Esse gesto doador efetuará uma revolução no ser “natural”, egoisticamente voltado para a autoconservação.

“Como se o destino judaico fosse uma fissura na crosta do ser imperturbável. Ruptura do natural e do histórico incessantemente reconstituídos e, assim, Revelação sempre esquecida” (AV, 18).

 Essa virada, “o dar de mãos cheias em vez da rapina”[33], é o ato religioso por excelência, no qual ocorre a aproximação de Deus. Onde chego a ser único, eleito para assumir a responsabilidade pelo outro, que reverte os esquemas antigos e batidos deste mundo, ocorre um ato inspirado por Deus, um ato profético que me torna livre e me confere a identidade própria.

“Não farei o Bem como um empréstimo a juros, a receber a curto prazo. Será que não me compreendeste, Nasty? Graças a mim, antes do fim do ano, a felicidade, o amor e a virtude reinarão sobre dez mil jeiras de terra. Nos meus domínios quero construir a Cidade do Sol, e tu pretendes que faça deles um covil de assassinos”[34]
No sentido de haver uma verdadeira transcendência, a relação entre eu e o outro não pode abolir a distância entre ambos. A transcendência se estabelece “a partir de um ponto separado da exterioridade tão radicalmente, que se mantém por si mesmo, é eu” (TI, 266). Para a pessoa enquanto ainda está como perdida na exterioridade, sem eu independente, uma relação com o Transcendente permanece impossível. A constituição da vida interior do eu separado é como o primeiro momento da relação ética que produzirá a Transcendência[35].
O eu é auto-suficiente, não devendo sua egoidade a qualquer contraposição dialética a um outro eu. Sou eu a partir de nada a não ser de mim mesmo. Sou um começo absoluto, uma descontinuidade no ser, uma vitória sobre o ser.
O outro revela em primeiro lugar a impossibilidade de ser apreendido por meios violentos. O outro, fora de qualquer contexto, em sua pobreza e miséria, apela para nossa bondade. Nesse apelo o outro mostra simultaneamente sua dignidade e uma certa supremacia que me obriga a comprometer-me. O outro vem “do alto”, porquanto transcende minha compreensão. A Sagrada Face é o outro.
Para Levinas, a religiosidade é inseparável da relação social. “A divisão do divino se abre a partir do rosto humano” (TI, 50). O único modo de entreter um relacionamento com Deus, “visão sem imagem”, é atendendo ao apelo que nos surpreende, vindo do rosto alheio, pedindo justiça.  
Uma certa imagem do Cristo – onde a realização da redenção parece repousar completamente na humilde aceitação do pior sofrimento – contribua ainda, por sua pretensa exemplaridade, a desqualificar a nossos olhos a complexa realidade da atitude em causa.
Como uma consciência humana jamais poderia arrancar o que quer que seja da sua humildade, se ela negligencia em tirar daí sua própria dimensão de ser, contingência, “facticidade” quer dizer, precisamente o que lhe compete a todo momento transcender, por suas realizações, enquanto ela se considera consciência, poder significativo, um perpétuo sobrepujar de si por si mesma?
Só o orgulho de dar sentido pode dar sentido e valor[36] a qualquer humildade; é em vão que alguém se considerará credor de uma pretensa caução espiritual, se não se tratar no caso senão de se demitir sob a cobertura do Espírito, renunciando a se conceber a si próprio como espírito no trabalho.
Ou bem a existência lhe apareça de qualquer maneira condenada a continuar ilusória (“vaidade das vaidades”...) e pouco importa, então, o uso que ela faça ou bem não pode evitar de se considerar parte aliciante e como agente real em relação à Causa que escolheu servir. Renunciar a se querer, a existir segundo si mesmo, na esperança de ser querido e totalmente salvo, é puro misticismo; querer salvar os outros e tentar realizar a própria salvação, comprometendo-se, com toda sua consciência, numa realização sem recursos, é apenas idealismo, certamente, pelo menos durante o tempo em que se crê poder fazê-lo sozinho.
O “realismo” e a “solidariedade” não corresponderiam para nós senão a uma opção de fracasso, se não os alcançássemos passando pelo idealismo, isto é, ultrapassando-o, no sentido em que a consciência não pode realmente “ultrapassar” a não ser o que ela conserva no próprio momento em que o nega[37].
E se toda essa confusão, entretanto, continua impossível, entre aquela humildade e uma certa humildade “cristã”, é que Sartre inicialmente passou a considerar como um fato de natureza humana aquela não existência de que sofria.
Assim, tornou ele contábeis os outros e ele próprio. Sem nunca tentar fugir às suas implicações práticas, seja atribuindo a algum castigo divino, seja pretendendo mudar esse mal em um “bem”, de modo a ter razão para não combatê-lo.
Nesse momento, parece-me, seu orgulho se equilibra, encontra seu centro de gravidade: é nesta aposta inicial sobre a realidade humana – o homem como único responsável pelas desventuras do homem - que se fixa a própria “permanência” com a qual ele pôde nos entreter meio século depois.
Em Hegel, o retorno à consciência-de-si, a consciência que representa o lado do mal (porque nela o ´Ser-aí´ natural vale como essência) deve elevar-se até ao espírito. O primeiro passo é convencer-se de que o ´ser-aí´ natural é o Mal; pois, mau, já é: o que está faltando é este saber, puro agir da consciência dentro de si mesma.
Ora, como a Essência, por um lado, já se reconciliou (em-si e consigo), as representações recebem agora um sinal oposto ao que antes tinham: adentrar-se em si já não é o Mal, mas o saber do Mal, primeiro momento de reconciliação: abandono de uma natureza imediata determinada como o Mal; morte e pecado. 
Será que Deus é de direita?, Yves Congar, teólogo francês: a idéia que esse título traz é talvez a mais exata que podemos ter de Deus, ou seja, a de que ele não é de direita, nem de esquerda, nem de centro, nem do alto, nem de baixo, nem de alhures, nem de nenhures; a idéia mais exata possível sobre Deus é a de que não podemos ter nenhuma idéia exata sobre ele[38].
Um dos princípios mais importantes da tradição judaico-cristã é exatamente este. Deus é afirmado como o Absolutamente Outro.
O essencial da religião judaica não está no ritual. O judaísmo é antes de tudo um modo de vida. Poder-se-ia dizer que o essencial do existencialismo não está no seu aspecto teórico. O existencialismo é um estilo de vida, um convite à autenticidade a toda prova. O ritual, embora seja o aspecto mais marcante da vida judaica, resumindo-a de certa forma, não é para Levinas o lugar privilegiado da relação com Deus.
A religião judaica é essencialmente relação ética com o outro, a quem se deve fazer justiça. Fora da dimensão ética não haverá possibilidade de entrar em contato com Deus. Um Deus encontrado fora da relação ética seria um ídolo. 
O judeu vive sua religião antes de tudo como ética: o outro, especialmente o pobre, dependente, nos obriga a fazer-lhe justiça. O único ser ao qual devemos submeter-nos – e essa “deferência” é uma exaltação! – é o Deus transcendente e o outro ser humano que traz a marca da transcendência divina.

“Nasty – Quando Deus Se Cala, podemos dizer, em Seu nome, o que quisermos[39].
Goetz – Oh! Profeta admirável! Trinta mil camponeses morrem de fome, eu arruíno-me para lhes aliviar a miséria e tu anuncias-me, tranqüilamente, que Deus me proíbe salvá-los.
Nasty – Tu? Salves os pobres? Não podes senão corrompê-los.
Goetz – E quem os salvará?
Nasty – Não te preocupes com eles; salvar-se-ão sozinhos”[40].

A responsabilidade pelo outro, o judaísmo a expressa na idéia de eleição. Entre os demais povos, os judeus se consideram eleitos para preocupar-se primeiramente com a justiça no mundo, passando para o segundo plano sua própria sobrevivência como nação. A eleição está na origem do destino do povo judaico, deixando-o por muito tempo viver na diáspora e à margem da história mundial.
O que polariza toda a vida dos judeus é a espera do Messias que significa uma sociedade justa, desalienada e personalizada, uma confraternização universal de todos os homens, “paz para os que estão longe e paz para os próximos” (Is 57,19). Em toda parte onde se instaura a justiça e a paz, o judeu percebe “os passos do Messias que se aproxima”. Portanto, a era messiânica é fundamentalmente o resultado do empenho humano em instalar uma sociedade justa e fraterna.  É na prática do amor gratuito e misericordioso, sobretudo ao pobre e desvalido, que o Deus de Israel se revela como mistério de ternura materna e de vida. 
O judaísmo antigo, embora centrado no varão, permitia, contudo, uma presença significativa da mulher na vida do povo. Os textos falam da importância política de Miriam, Éster, Judite, Débora, realçam o papel das antigas profetisas e das anti-heroínas Dalila e Jesabel; há descrições de comovedor encanto como o encontro e o diálogo do servo de Abraão com Rebeca (Gn 24,15-67); não deixam de marcar profundamente as figuras de Ana, Sara ou Rute e mesmo todo o idílio que cerca o amor entre o homem e a mulher no Cântico dos Cânticos.
A verdadeira imagem é a relação. São João chegará a afirmar: “Quem não ama permanece em Deus e Deus permanece nele”. Palavras demasiado simples que nos colocam diante de uma dificuldade de amar, ou seja, de nosso irreconhecimento do verdadeiro Deus.
Não é por acaso que o Cântico dos Cânticos  - esse cântico do Bem Amado e da Bem Amada – se situa exatamente no centro[41] da Bíblia. É que, tanto para o judeu quanto para o cristão “praticante”, o amor humano é uma das melhores vias de acesso para chegar a um Deus que não seja um ídolo, isto é, um Deus que não é possuído por nós do mesmo modo que não é possível possuir o amor.

“Todas as manhãs, esse amor terá de renascer de suas dúvidas e medos, à semelhança do dia desenhado em um quadro de Margritte com farrapos da noite colados aos postes de iluminação”[42].

A igualdade criacional do varão e da mulher é o primeiro princípio da antropologia judeu-cristã atestado na primeira página da Bíblia, no relato sacerdotal do Gênesis. Contra o espírito antifeminista do tempo, o autor sagrado afirma de forma contundente: “Deus criou o ser humano (humanidade) à sua imagem... criou-os varão e mulher” (Gn 1,27). Aqui se mostra a fundamental igualdade de ambos; tanto um quanto outro são igualmente imagem de Deus. Esta imagem de Deus só é completa quando refletida nos dois sexos.
As ciências antropológicas nos falam do varão e da mulher como dois modos diferentes e relacionados de ser homem. Que é o homem? É a pergunta que o espírito faz e que ocupa a filosofia. O espírito não se dá por satisfeito com saber sobre o varão e a mulher. Quer saber quem é o homem.
Na tradição bíblica, Deus não aparece unicamente sob a linguagem masculina. O feminino é também veículo da revelação de Deus. Deus e Cristo são personificados na temática feminina da sabedoria (Pr 8,22-26; Si 24,9; 1Cor 24,30). Esta Sabedoria é uma hipostatização do próprio Deus. Mulher e Sabedoria estabelecem entre si uma estreita correlação (Pr 31,10.26.30), ocorrendo uma transmutação simbólica entre uma e outra (Pr 19,14. 40,12; Sb 3,12; 7,28). Ou Deus é comparado como a mãe que consola (Is 66,12), mãe incapaz de esquecer o filho de suas entranhas (Is 49,15. Sl 25,6; 116,5); Jesus se compara como a mãe que quer reunir os filhos sob a sua proteção (Lc 13,34). E no termo da história, Deus terá o gesto da grande e bondosa mãe, enxugando as lágrimas de nossos olhos, cansados de tanto chorar (Ap 21,4). Todo o elemento de ternura, aconchego, derradeiro refúgio da salvação de Deus é apresentado na tradição na linguagem feminina.
O teólogo luterano Paul Tillich usa esse mesmo princípio, Deus afirmado como o Absolutamente Outro, como base de toda a crítica profética judaica. Em linguagem religiosa é expresso pelo mandamento de não criar imagens de Deus e, no seu desenvolvimento concreto, apresenta-se como crítica dura contra todos os ídolos, ou seja, contra todos os falsos absolutos.
Como praticar esse princípio do reconhecimento de Deus como o único absoluto? Por um esforço constante de transformação de nosso olhar, de nossa perspectiva diante dos acontecimentos da vida, buscando tomar consciência – não só intelectual, mas de forma existencial – da relatividade de todos os acontecimentos.
Deus é, mas não é nada do que pensamos, é sempre outra coisa, é sempre mais, e essa idéia, unida com o princípio de que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, torna-se um princípio extremamente crítico e libertador. Se absolutizarmos Deus em nossa vida e ele não é nada do que existe ou do que podemos pensar ou imaginar, tudo mais se torna relativo.
Absolutizar Deus não deveria implicar a negação absoluta do mundo, mas uma liberdade diante deste que nos permitisse, por meio de um discernimento constante, usufruir tudo sem nos apegarmos a nada.
Deus é absolutamente outro, contudo se revela no outro não-absoluto; acima de tudo mediante o amor ao próximo, mas também mediante as tradições religiosas, a arte, a filosofia.
A filosofia não prolonga apenas as questões cientificas; ela possui outra ordem de indagações. Assim, entre a ciência e a filosofia existe uma ruptura epistemológica. A filosofia arranca, como a poesia, da estarrecedora admiração de que algo existe[43]. A existência da filosofia como atitude e como disciplina revela a capacidade do espírito humano de poder alçar-se acima das determinações concretas da realidade, os entes, e perguntar pelo ser simplesmente.
A partir do ser contempla os entes como revelações e velações do ser. Assim, na ocorrência masculino/feminino, interroga em que medida o biformismo sexual é concretização do ser, manifestação da suprema realidade.
As grandes tradições religiosas são espaços privilegiados da revelação de Deus. Não são, contudo, os únicos. 




[1] Capítulo retirado da tese À Luz das Palavras. Com este texto, esclarecemos o que não concordarmos com a posição de Marco Antônio Souza. 
[2] Citamos uma passagem de Nietzsche em que ele declara que os Judeus apenas desejam estabelecer-se. Há ainda outra passagem em que o mesmo filósofo se refere á futura ascendência dos Judeus na Europa: ‘Cada judeu pode encontrar na história da sua família ou dos seus antepassados uma longa série de exemplos na maior calma e perseverança no meio das maiores dificuldades e das mais terríveis situações, e uma perfeita astúcia para lutar contra o infortúnio e contra os reveses da sorte. E, acima de tudo, é a sua bravura sob a capa de uma miserável sujeição e o seu heróico spernere se sperni (desprezar o ser-se desprezado) que ultrapassa as virtudes de todos os santos”. Esta passagem é favorável aos Judeus. Os Judeus, de acordo com Nietzsche, mostraram e mostram um notável amor à vida – mesmo mais do que os gregos. Eles não desejavam por forma alguma verem-se privados do seu corpo, mas desejavam conserva-lo para sempre. Nietzsche cita o martírio judaico dos Macabeus ii, 7, que “não queriam abandonar os intestinos que lhes haviam sido arrancados, pois desejavam tê-los consigo no dia da ressurreição” – uma perfeita característica judaica. 
[3] Rm 1,28; Col 1,9,10; 2,2; Ef e,17; 4,13.
[4] 1,6; 4,25; 7,7;
[5] Faz-se mister ressaltar e sublinhar que Sartre busca, deseja alcançar através de suas obras o fundamento, assumindo a fé, o dom que vem de Deus, em suas próprias palavras “Não se é um ser humano enquanto não se encontra alguma coisa pela qual se está disposto a morrer”.
  
[6] JEANSON, Francis. Sartre. Trad. Elisa Salles. Ed. Etitions du Seuil. Ed. José Olympio. 1955. pág. 56. 
[7] Idem, idem.
[8] SARTRE, Jean-Paul. O diabo e o bom Deus. Trad. Gabriela Alves Neves. Edição Unibolso. 1951. pág. 138.
[9] Idem, idem. pág. 151.
[10] A leitura se revela, então: o encontro com o outro se dá, em Sartre, sem mediação de conceito ou imagem, quando adota como filha a judia Arlette Elkaim, e com o encontro com Benny Lévy, estar Sartre assumindo a causa dos judeus.
[11] Tomando aqui em consideração que o “Mesmo”, sob a luz de Luhmann, Horkheimer, é a Totalidade, neste sentido a ontologia subsume o outro no mesmo. A teoria se compromete numa via que nega o desejar metafísico, a maravilha da exterioridade, onde habita este desejar. Entretanto a teoria como referência à exterioridade [... tem] uma intenção crítica que não reprime o outro no mesmo como a ontologia, mas que coloca o mesmo em questão... Chamamos este colocar em questão minha espontaneidade, em presença do outro, ética... A metafísica, a transcendência, o hospedar o outro no mesmo, o outro pelo eu, se realiza concretamente como o colocar em questão o mesmo pelo outro, isto é, como ética que cumpre a essência crítica do saber.
[12] SARTRE, Jean-Paul. Las palabras. Alianza Losada. Buenos Aires. Madrid. 1964. págs. 167-168.
[13] LOPES, Paulo César. Pode um cristão ser budista? Paulus. 2004. pág. 45..
[14] LAMA, Dalai. O caminho para a liberdade. Ensinamentos fundamentais do Budismo tibetano. Trad. de Beatriz Penna. 4º edição. Nova Era. Rio de Janeiro. 2001. pág. 18.
[15] Paulo César Lopes em Utopia cristã no sertão mineiro à pág. 10 assim nos diz, não só reduzindo a vida ao desejo, mas acrescentando “A vida é desejo, vontade e razão”. Eros, patos e logos em busca de sua realização. Assim, o homem conhece o mundo com todo o seu ser. Conhecer e ser confundem-se. O conhecimento como totalidade, unidade, não é suficiente para ajudar na conservação da Vida. Essa totalidade desfaz-se num desenrolar histórico que, de certa forma, busca reencontrar-se como totalidade, mas então como consciência de si mesma. O Em-si da Vida busca o Para-si.
[16] RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé.Introdução ao conceito de cristianismo. 2º ed. Trad. Alberto Costa. Paulus. 1984. pág. 55.
[17] SARTRE, Jean-Paul. O diabo e o bom Deus. Trad. Gabriela Alves Neves. Edição Unibolso. 1951. pág. 164-165.
[18] Em Sartre, a responsabilidade entra no mundo pela “escolha original”, a nascida na tensão da realidade humana e da situação.
[19] Novo em Sartre é a idéia de que a leitura seja um ato essencialmente livre, não mera resposta a algumas palavras, mas a constituição de um objeto – a obra – que não existe anteriormente à sua constituição e que não é idêntica às palavras, as quais não podem causar o ato da leitura.
[20] Aquando recebi o “livro branco”, de Thich Nhat Hahn, Para Viver em Paz. O milagre da Mente Alerta, de presente de Paulo César Lopes e Nívea Maria Matteocci, sonhei que estava à beira de um abismo com os meus filhos. O primogênito, Sacha Lucien Moser Ferreira, estava calmo e tranqüilo sentado em meu colo. Kayros Christian Moser Ferreira queria a todo custo aproximar-se do abismo. Dizia-lhe que não, não se aproximasse. De repente, olhando de lado, percebi uma porta aberta. Deixei meus filhos, dirigindo-me à porta. Entrando, percebi que minhas mãos estavam cheias de sementes. Jogava-as no chão. Nascia uma espécie de pé de alface. Continuei jogando. De imediato a semente caia na terra nascia a planta. Tive vontade de comer um pedaço da folha. Alguém surgira, chamei-o no sonho de “homem do espaço”, dizendo que não comesse aquela planta, era ruim. Disse-lhe que não. Arranquei e comi. Uma delícia. Senti-me calmo e tranqüilo, uma sensação fria no corpo inteiro, estava ventando no alto da serra, à beira do abismo. Continuei semeando.
[21] Buscar fundamentar o misticismo de Sartre não significa, em hipótese alguma, desconhecer ou negligenciar o ateísmo de Sartre; a síntese misticismo-ateísmo nos dá a imagem do pensamento em sua totalidade.
[22] BAYARD, Jean Pierre. Les sens caché des rites mortuaires, vol. I, Dangles, 1993.
[23] O mundo era presa do Mal; uma única salvação: morrer dentro de si na Terra, contemplar do fundo de um naufrágio as idéias impossíveis. Como não conseguiria isso sem um treinamento difícil e perigoso, havia-se confiado a literatura a um corpo de especialistas. O clero tomava conta da humanidade e a salvava pela responsabilidade dos méritos.
[24] O nome hinduísmo foi inventado pelos europeus para a religião indiana. Na realidade, ele não designa uma religião indiana única, mas toda uma variedade, um grande número de religiões.  No hinduísmo não se trata, em primeira linha, de proposições a serem cridas, não se trata de dogmas nem de uma ortodoxia: o hinduísmo não conhece nenhum magistério. Não se trata de determinados direitos que se possuam perante os outros. Sim da grande destinação do homem, dos deveres que o homem tem: deveres para com a família, para com a sociedade, para com Deus e para com os deuses.
[25] CARDOSO, Joaquim Lúcio. 2º ed. Editora Nova Fronteira. 1979. pág. 9.
[26] SARTRE, Jean-Paul Sartre. O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. 11º ed. Vozes. Petrópolis. Pág. 633.
[27] Observe-se que a epígrafe de A convidada, Simone de Beauvoir, é um pensamento de Hegel: “Toda consciência visa à morte de outra”.
[28] Idem, idem. Págs. 624-625, 629.
[29] Tomei consciência, não apenas intelectual, mas o vivido, o experienciado nas situações e circunstância, na vida e na alma – como costumo dizer ao empregar a expressão “letras adentro” – quando li Utopia cristã no sertão mineiro – uma leitura de “A hora e vez de Augusto Matraga” de João Guimarães Rosa, lançado pela Editora Vozes em 1997. A idéia que dei adesão de imediato, uma intuição do verbo amar: “Se o Ser se faz continuamente, a continuidade é também o Ser”. A partir então, comecei a investigar a questão da “eternidade”, do “eterno”. O questionamento: “o que não entendo é filósofos e mais filósofos, cada um ao seu modo e estilo, dizem da eternidade, mas é sempre na maioria que o conceito é abstrato, vago, especialmente em Sartre, enquanto que, em Dostoievski, nós nos alimentamos do eterno, daí a busca das origens mais profundas. Para mim, alimento-me do eterno, estou à busca de tomar no cálice um gole de seu gosto e paladar, o sentimento de liberdade e transcendência. A Literatura, a Filosofia não são justificativas, no sentido de algo exterior com que me engano e me traio, nego o meu “pecado original”, quero apenas me refestelar na cadeira de balanço da “zona de conforto”. É algo que se vai elaborando, estabelecendo, criando, algumas vezes, o desencontro, por vezes o encontro e, por vezes, ainda, a realização. Daí é que compreendi o que isto a entrega ao sonho do verbo amar. Continuamente vou vivendo e traçando os caminhos de busca de quem sou, o encontro com o outro.  “-  o êxtase de um encontro com outros seres que a cada jorrar da água na fonte originária é um ser delineado por outra água, o espírito se re-velando e se ocultando, criação de dentro de uma criação, de dentro de outra criação, e o rio segue a sua trajetória...”. Assim, escrevera em “Na fonte originária do rio de águas límpidas”, publicado pelo jornal Folha de Curvelo, em 1999, sentindo algo profundo, uma luz que se mostrava por vezes e se escondia, e um desejo de conhecer, o que não sabia. A água havia despertado algo profundo em mim, a continuidade de conhecimentos, a busca de me confundir com quem sou, sem freios e celas. A água busca sempre seguir o seu itinerário, sem pressa e margens, descer do céu para baixo, e, com os caminhos perseguidos, ela busca aquilo que sustenta todos os caminhos passados e vividos, a água, levando-a para o céu onde ela se transforma em nuvens, até voltar a cair sobre a terra como chuva e aí despertar a matéria para uma vida nova, o espírito para outros sentimentos e intuições, a continuidade... Assim, concebo a vida que escolhi consciente de quem sou, o que faço de mim, o que será de mim... Sei, tenho consciência, vivo, alimento-me desta busca do sublime. Nesse ensaio, busco, acima de tudo, mostrar as contribuições de Sartre, no processo de minha vida de intelectual,  de escritor, de professor; nunca fechar-me num sartrismo, aliás, a própria doutrina sartreana isto apregoa, seria uma justificativa ridícula para a minha vida, a existência. Sartre trouxe grandes contribuições, e este tema e temática do “místico”  “misticismo” em Sartre, não é apenas um mergulho na fé sartreana, mas o que ela contribui para o meu crescimento, creio, hoje, que estou maduro para novas experiências, sustentado na busca, e “escrever sobre os autores” , especialmente sobre Sartre, é um prazer. A palavra-chave, que está em evidência e ênfase, é o “diálogo ecumênico”, a filosofia e todas as religiões, tomando em consideração as origens, o judaísmo.  E por que não sobre um dos mais famosos filósofos, considerados ateu, e essa idéia hoje é umas espiras do espiral, que é a dialética de Sartre. A vida eterna significa, então, para mim, o Ser que se faz continuamente, a continuidade sendo também o Ser, de acordo com o que escrevera no artigo mencionado acima: “o mistério dessas águas, essas águas capazes de encher a carência de amor, viu em Deus as minhas sensações, intensidade da vida, assumindo um sonho de um real ad-verso valoriza o sinal inequívoco de um pássaro apanhando um peixe, a persistência em direção ao fim.”.          
[30] Sartre, em O ser e o nada, diz: “(...) é com relação a todo homem vivo que toda realidade humana é presente ou ausente sobre fundo de presença originária. E esta presença originária só pode ter sentido como ser-olhado ou como ser-olhador, ou seja, desde que o outro seja objeto para mim ou que eu seja objeto-Para-outro. O ser-Para-outro é um fato constante de minha realidade humana e apreendo-o com sua necessidade de fato em qualquer pensamento, o menor que seja, que formo sobre mim mesmo”. A ausência não é um nada de conexões dotado de uma localização, mas, ao contrário.
[31] A busca só se revela real, experiência vivida, sentido vivenciado, habitando nela a idéia de continuidade, a continuidade sendo o eidos da realidade humana.
[32] SARTRE, Jean-Paul, FERREIRA, Vergílio. O existencialismo é um humanismo. Editora Presença. Livraria Martins Fontes. Tradução e notas de Vergílio Ferreira. 4º edição. Pág. 219.
[33] Neste sentido, um amigo dera-me a oportunidade de uma transformação, no dizer vulgar de 360 graus, na minha vida. Pedira-me que nada comentasse a respeito com ninguém, fosse um segredo tumular, dizendo-me: “Aqui está o que a mão esquerda faz não deixando a direita saber”. Escrevi este capítulo pensando com muito amor neste amigo, um agradecimento eterno a sua atitude.
[34] SARTRE, Jean-Paul. O diabo e o bom Deus. Trad. Gabriela Alves Neves. Edições Unibolso. 1951. pág. 143.
[35] Levinas pensa em primeira instância numa interioridade egoísta. Em princípio, O ser e o Nada, de Sartre, está fundado nessa interioridade egoísta. Mais tarde, a interioridade se aprofunda quando percebo que estou em dívida com o outro, dívida que vai até mesmo aumento à medida que procuro pagá-la. É com esta conferência, ministrada por Sartre, contra muitas críticas, é que Sartre reconhece o compromisso, a responsabilidade com o outro. Nessa responsabilidade, nesse compromisso interminável se realiza a transcendência do Infinito. 
[36] Sob o ponto de vista ontológico, tanto vale dizer que o possível e o valor surgem como limites em direção aos quais uma falta de ser se projeta com o fim de se anular, ou que a liberdade, elo seu aparecimento, faz surgir o seu possível e, ao mesmo tempo define o seu valor. Qual será, portanto o possível último e, por conseqüência, o valor absoluto em direção do qual se projeta o para-si? Somente no-lo poderá revelar uma psicanálise existencial, isto é, uma pesquisa que revele a escolha original que o homem opera ao determinar a sua posição no mundo. Partindo da experiência e baseando a pesquisa na concepção pré-ontológica (ou espontânea) que o homem tem de si mesmo, descobriremos que o projeto fundamental ou escolha original do homem não pode ser senão o projeto-de-ser, pois é evidentemente impossível para lá do ser, não havendo, porém, qualquer diferença entre possível, valor, projeto-de-ser e ser. Fundamentalmente, o homem é desejo de ser.
[37] Aqui, o conceito hegeliano de “aufheben”: ultrapassar, conservando.
[38] Aqui está a dificuldade de compreensão e entendimento de toda a doutrina sartreana, a que nível ele se lança com a sua traição, pensar contra si mesmo. Não se pode ter uma idéia exata de Sartre, quem é ele, em verdade, e este não poder é a idéia mais exata possível. A traição, os jogos, os dados lançados, as frases bombásticas são as pedras angulares dessa idéia.  
[39] Esta fala de Nasty lembra a de Dostoievski: “Sem Deus, tudo é permitido”.
[40] SARTRE, Jean-Paul. O diabo e o bom Deus.Trad. Gabriela Alves Neves. Edições Unibolso. 1951. pág. 141.
[41] Interessante é observar que exatamente no meio da edição da Unibolso, haja a fala de Nasty, em diálogo com Goetz: “O bem não engendra o Mal, seja”. Noutras palavras, o Amor não dá origem ao Mal. Na edição da Gallimard, 1951, também esta fala se encontra no meio da obra: “Le Bien n´engendre pás le Mal, soit: puisque ta folle générosité va provoquer un massacre, c´est donc que tu ne fais pas le Bien”
[42] LELOUP, Jean-Yves. A arte da atenção. Para viver cada instante em sua plenitude. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira.  Verus Editora. 2001.
[43] Conforme a famosa sentença de Tomás de Aquino em seu Comentário à Metafísica de Aristóteles, 1,3: “O filósofo se parece com o poeta porque ambos se ocupam com o maravilhoso (mirandum)”.

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