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terça-feira, 24 de novembro de 2015

OURO E RISO - METÁFORA DA FONTE ORIGINÁRIA - MANOEL FERREIRA NETO.




1.0

1.1     – TEOLOGIA DA REVELAÇÃO E A LIBERTAÇÃO

A religião da revelação é, por definição, diálogo, um encontro do homem com o Deus vivo. Sei que este “slogan existencial”, esta fórmula em moda, tem sido tão empregada a propósito e fora de propósito, que é preciso coragem para continuar a utilizá-la. E, no entanto, ela só faz é traduzir em forma moderna a relação teologal pessoal com Deus em virtude da graça – o diálogo pessoal com Deus -, realidade desde sempre reconhecida. Tomados em seu sentido próprio, os termos “encontro com Deus”, “experiência” de Deus constituem a definição da visão do céu, e não da vida da graça neste mundo.
Na terra não pode haver para nós senão uma experiência de fé e de amor, na qual uma mediação subjetiva – consciência de que Deus se nos dirige com a graça – torna possível uma intersubjetividade, intertextualidade, se olharmos a linguagem e o estilo, o mergulho na Palavra de Deus, com ele na fé.  Mas é também um dado de fé o de que não existe nenhuma mediação objetiva nesta comunhão de graça com Deus.
Por definição, a comunhão de graça constitui real intersubjetividade, a comunhão, adesão, das idéias e sonhos, utopias da linguagem e do estilo, vivências e experiências no âmbito do quotidiano entre as coisas, homens, objetos, e a Palavra divina, a re-velação da superação da solidão e a busca da divindade da Palavra, vista à luz da teologia, da dialética da liberdade e da revelação, dentre Deus e o homem, uma partnership em que Deus se dirige pessoalmente ao homem e o homem lhe responde pessoalmente na fé. Noutros termos, um encontro com Deus na fé. Esta expressão moderna do dogma da graça é perfeitamente exata.
A fé é a resposta do homem ao Deus vivo que se revela. Porém a abordagem da interioridade de um ser opera-se diferentemente, segundo a natureza desse ser. Se, por princípio, todo ser é aberto aos outros com esta abertura realiza-se, entretanto, de modo diverso, conforme se trate de uma coisa material, de um ser espiritual ou de um homem, e, finalmente, de Deus.   
Na Teologia da Libertação, apresenta-se a revelação em seus diversos aspectos como profundamente vinculada com o homem, suas necessidades, desejos, anseios, expectativas. Libertação pressupõe uma ruptura no modo de ver e de atuar na sociedade e na Igreja: a partir dos oprimidos contra a sua opressão; a favor dos pobres contra o seu empobrecimento.
Cristo veio para anunciar “o evangelho do Reino” (Mt 4,23). Seu Reino messiânico é o Reino de Deus (Ef 5,5). Em que consiste essencialmente este Reino de Cristo, do Pai, de Deus, dos Céus?
O Reino é a realização plena. Os que agora são pobres “deles é o reino dos céus” (Mt 5,3); os que agora sofrem “serão consolados”; os que agora são oprimidos “herdarão a terra”; os que agora têm fome, “serão saciados”; os que agora servem, “serão servidos”; os que têm o coração reto, “estarão face a face com Deus”; os que lutam pela paz, “serão chamados filhos de Deus”. Como se pode perceber com clareza e transparência, ante as negatividades atuais, o mundo passando por tantas trans-formações, o reino se apresenta como realização total do homem, como a positividade absoluta, irreversível, infinita.
Não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu “ser-aí” e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente. 
Jesus prega o evangelho do Reino, a plena realização do homem na infinita alegria de Deus; mas, crucificado e ressuscitado, ele se ausenta. Contudo, prometeu que haveria um defensor da construção do Reino: “Quando vier o Espírito da verdade, ele vos ensinará toda a verdade” (Jo 16,13).
O Reino, a transcendência absoluta com respeito a toda práxis, a todo face-a-face histórico, a toda “comunidade” é sempre um “mais-além”, um além de toda realização humana. É o signo, sinal, horizonte que nos indica: “Isto ainda não é suficiente bom, santo, feliz e justo; ainda fica algo por fazer!” Querendo ver um carvalho na robustez de seu tronco, na expansão de seus ramos, na massa de sua folhagem, não nos damos por satisfeitos se em seu lugar nos mostram uma bolota. O começo do novo espírito é o produto de uma ampla transformação de múltiplas formas de cultura, o prêmio de um itinerário muito completo, e também de um esforço e de uma fadiga multiformes.
O Reino como realidade é algo mais que é preciso praticar. O Reino como categoria é o horizonte crítico que assinala a negatividade, a injustiça, o egoísmo da ordem atual, vigente, dominante.  
A construção da teologia da libertação significa:

(...) integrar o saber sensível ao nosso atual saber racional para suprassumirmos a nossa razão presente, elevando-a a uma razão ontológica, uma razão não só da cabeça, mas do Ser por inteiro[1].

No tangente ao objeto de nosso ensaio, ESPIRITUALIDADE: DIALÉTICA DA LIBERTAÇÃO E REVELAÇÃO, não nos esquecemos de que o que era uma dialética, de intenção eidética da História da Santíssima Trindade torna-se desejo e vontade de viver o Verbo Amar.
Os mil e quinhentos anos da história real da aliança do Antigo Testamento com Moisés e os profetas, todos os seus matizes e suas dramáticas transformações, não passam de breve momento da última preparação da história para Cristo. Para nós, essa pré-história veterotestamentária de Cristo não passa, pois, da pré-história última e imediata do próprio Cristo, uma vez que um enunciado verdadeiramente teológico sobre ela ainda válido para nós agora nos é possível pelo menos somente em vista de Cristo.
Não é o conteúdo concreto dessa história antes de Cristo na antiga aliança que a constitui história da revelação (pois categorialmente nada acontece que não aconteça também na história de outros povos), mas é a interpretação dessa história como o evento de comunhão dialogal com Deus e como tendência para o futuro aberto que torna essa história história da revelação. Esses dois momentos não são interpretações adicionadas extrinsecamente a essa história, mas momentos históricos no interior do que está sendo interpretado; mas é a interpretação que constitui a história como “História da Revelação”.  
Liberdade só se entende como risco, como compromisso. Questiona a segurança humana, quando vazia, carente de compromisso e decisões. Opõe-se à negação do humano em uma existência de submissão, sem raízes, sem culpa, sem posições, sem criação, pura ausência e infantilismo. Liberdade é a existência autêntica, que se experimenta na solidariedade, comunhão com os outros humanos e se contrapõe a uma vida sem história, sem responsabilidade, sem aventuras. Liberdade é o desejo real de re-novação espiritual e humana, que se real-iza no sentimento de amor e compaixão.
A espiritualidade vive da gratuidade e da disponibilidade, vive da capacidade de enternecimento e de compaixão, vive da honradez em face da realidade e da escuta da mensagem que vem permanentemente desta realidade. Quebra a relação de posse das coisas para estabelecer uma relação de comunhão com as coisas. Mais do que usar, contempla. 
Crer na Trindade significa: a verdade está do lado da comunhão e não da exclusão; o consenso traduz melhor a verdade do que a imposição; a participação de muitos é melhor do que o ditado de um só. Crer na Trindade implica aceitar que tudo se relaciona como tudo formando um grande todo, que a unidade resulta de mil convergências, adversidades, e não de um fator só.
O começo do novo espírito é o “todo”, que retornou a si mesmo de sua sucessão [no tempo] e de sua extensão [no espaço]; é o conceito que-veio-a-ser conceito simples do todo.
Criando Deus o outro diverso dele e, criando-o, o cria como finito, quando Deus cria o espírito, que por sua transcendência conhece o outro como finito e, confrontando-o com o seu próprio fundamento, o conhece como o totalmente outro, ou seja, precisamente como o mistério santo e inefável o distingue do que é meramente finito, então com isso já está dada certa manifestação de Deus como o mistério infinito, manifestação que – ainda que com conceito exposto à equivocação – se costuma chamar de “revelação natural de Deus”.
A vida de Deus e o conhecimento divino bem que podem exprimir-se como um jogo de amor consigo mesmo; mas é uma idéia que baixa ao nível da edificação e até da insipidez quando lhe faltam o sério, a dor, a paciência e o trabalho negativo. De certo, a vida de Deus é, em si, tranqüila igualdade e unidade consigo mesma; não lida seriamente com o ser-Outro e a alienação, nem tampouco com o superar dessa alienação.  
Para além dessa “revelação natural”, que propriamente consiste na existência de Deus como questão (não como resposta), existe a revelação de Deus propriamente dita. Essa não está dada com o mero ser espiritual do homem enquanto transcendente, mas tem caráter de evento, é dialogal, nela Deus fala ao homem, dando-se a conhecer não apenas como aquele que se pode ler sempre e em toda parte do mundo através da totalidade da realidade mundana que aponta necessariamente a questão de Deus e o questionamento do homem por parte desse mistério.
A revelação propriamente dita antes desvela – pressupondo-se a existência do mundo e do espírito transcendental – o que no mundo e para o homem ainda é desconhecido, a saber, a íntima realidade de Deus e sua livre relação pessoal para com sua criatura dotada de espírito. 
A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quem quer que seja perceber o “mistério” da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo em que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”[2].
Creio fazer-se mister o entendimento de algo que vem fundamentar este pensamento uma afirmação de Martin Heidegger, “A obra é origem do artista. O artista é origem da obra”, a Verdade é origem da Liberdade e a Liberdade é a origem da Verdade.
Revelar, comunicar, manifestar é, no fundo, fazer conhecer alguma coisa a alguém. Entretanto, aquilo que se comunica não é uma realidade a ser simplesmente conhecida, mas é uma oferta de salvação a ser vivenciada.
A revelação de Deus comunica a si e a seu plano, realizando-o salvificamente em relação ao homem. Portanto, trata-se de: 1) autocomunicação reveladora (conhecimento); 2) autocomunicação salvadora (práxis, ação, eficácia).
Deus revela-se, salvando; salva, revelando-se. Deus nos salva, autocomunicando-se. Ao autocomunicar-se, salva-nos. Assim, Revelação denota o aspecto de realização salvífica (desta comunicação). Salvação denota a atuação de Deus salvadora, conota a revelação que nos manifesta que é como Deus nos salva.
Deus, que se dá a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé, o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isso significa que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus quem o garante. Essa verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e impele a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo.
G. O´Collins, em Teologia Fondamentale, observa que “a revelação e a salvação não terminaram com a era apostólica”. Prosseguiram e prosseguem em dependência da experiência única e normativa, a experiência apostólica de Jesus Cristo e a que lhe dá testemunho[3]
Na fé, não basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em ação. Mais, é a fé que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Assim, se contemplamos o que esta idéia se nos revela de divino, o mais importante que a consciência do bem é fazer o bem, a consciência do amor é amar. Mais importante que saber como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, é viver a comunhão que é a essência da Trindade.
Kant escreve no prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura, publicada em 1781, já aos cinqüenta e sete anos de idade: “Tive, pois, que desistir do conhecimento para achar um lugar para a fé”[4]. Para Kant, assim como para Rousseau, a fé é uma verdade do coração, ou melhor, da consciência, que se situa além de todas as reflexões e demonstrações filosóficas:

A fé em um Deus e no outro mundo está tão entrelaçada com minhas convicções morais que, assim como não corro perigo de perder estas últimas, tampouco me preocupo com a possibilidade de que a primeira  me venha um dia a ser arrancada[5].

Apesar de ser conhecido como Iluminista, Rousseau decepcionou-se profundamente com os ideais vigentes do Iluminismo em função da supervalorização da ciência e da razão, que tendem a forjar o indivíduo interpondo entre a possibilidade de o homem encontrar a verdadeira liberdade e influencia seu desenvolvimento moral. É assim que Rousseau privilegia o instinto e as sensações mais que a razão. Uma vez carente de ser educada, a sensibilidade natural, o instinto, a sensação tornam-se poluídas e, nesse estado de poluição, “apodrece” a alma. Se ao contrário, permitirmos doutrinar a qualidade instintiva do homem, suas tendências espontâneas, o homem torna-se melhor, mais generoso.
O iluminismo é a inteligência vazia, cujo conteúdo se manifesta como um Outro: encontra portanto nessa figura, em que o conteúdo não é ainda o seu, o seu conteúdo como um ser-aí totalmente independente dele: encontra-se na fé. O iluminismo assim apreende seu objeto primeiramente e em geral, tomando-o como pura inteligência, e desse modo o declara – não reconhecendo [nele] a si mesmo – como um erro. Na inteligência como tal, a consciência apreende um objeto de maneira que se converte em essência da consciência, ou seja, [um objeto] que a consciência penetra e no qual se mantém, fica junto de si, e presente a si mesma; e sendo assim a consciência o movimento do objeto, ela o produz. O iluminismo acertadamente enuncia a fé como uma consciência desse tipo, ao dizer que é um ser de sua própria consciência – seu próprio pensamento, um produto da consciência – aquilo que para a fé é a essência absoluta. Com isso declara a fé como sendo um erro, e uma ficção poética sobre o mesmo que o Iluminismo é.
O pensamento de Rousseau culmina com um ideal de homem livre de paixões, que procura perpetuar a sua espécie, valorizando um modo de vida que não prejudique aos semelhantes, dessa forma a paz reinaria e, ignorante em especulações epistemológicas profundas, o homem caminharia para a perfeita condição existencial, criaria naturalmente interesses individuais que seriam comuns também aos interesses coletivos. A sociedade não pode retroagir ao seu estado primeiro, contudo pode ser transformada, moldada.
A partir do Iluminismo, a linha-mestra é a luta por toda e qualquer instituição que não tenha como princípio primeiro a razão. A “Ciência Nova” estava estabelecida, o culto à razão e a ciência imperavam. Destruindo toda ordem estabelecida, inclusive, os valores do cristianismo, o Iluminismo coloca ênfase em um conjunto de idéias das quais o bojo, o centro, é o ceticismo na figura do Deus transcendente. Voltado ao inatismo, o iluminista afirma que todas as respostas e soluções para os problemas dos homens estariam no plano humano.
Daí uma repulsa voraz contra os dogmas católicos. Rousseau, propriamente dito, em algum momento, mal entendido pela instituição religiosa de sua época, coloca acentuada atenção à consciência ao afirmar que o homem deve a ela recorrer para saber o que é bom e o que é mal. No cerne da sua filosofia havia uma reação contra os otimistas racionais, contra os “iluminados”, os quais apontavam que as soluções dos problemas humanos estão no uso irrestrito da razão, que, por sua vez, opera tudo em todos, que repara as necessidades humanas. Os iluminados desprezavam a fé, a crença em Deus, a possibilidade da providência divina e até mesmo a imortalidade da alma.
Para Rousseau, o homem tem uma consciência íntima que o guia, ou pode guiar, ao caminho do bem, da honestidade, da igualdade, tornando-o humano e solidário. Por essa razão, ele tinha fé na condição natural, na espontaneidade da criança. O mundo via nascer em plena ascendência o naturalismo de Rousseau. O que passou e tocou a sua percepção e provocou uma desestabilização psicológica, em sua época, foi exatamente a profunda valorização nas capacidades instintivas inatas das quais somos dotados.
Na concepção do filósofo, podemos dizer que o caminho da sã consciência moral passa por uma estrada de mão dupla. O homem obedece apenas a si mesmo e assim fará o bem. Fará o bem porque tem em si mesmo o ideal do bem para todos e não para si. Logo, pode e deve ouvir só a si mesmo. E Rousseau não tomava esses princípios por utopia. Ao contrário, acreditava que é o caminho para alcançar a liberdade do eu-interior, que será amparado pelas leis que criou, já que o eu faz parte do coletivo, e o coletivo elegeu as leis.
Assim, a consciência tem a função de equalizar os homens na ordem e na igualdade. Esse homem em questão é possuidor de plena liberdade. Forçando um pouco o texto, podemos dizer que para Rousseau surge uma coação de dentro para fora, de si para o todo, desprezando-a, estará desprezando a própria existência. Para o filósofo, o homem, negligenciando a voz da própria consciência, contrai invariavelmente a mais legítima manifestação da escravidão social e torna-se refém da elite, que é comprometida com uma ortodoxia destituída de qualquer compromisso cívico e de solidariedade social.
O ato pelo qual nos entregamos a Deus sempre foi considerado pela Igreja como um momento de opção fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em ação o melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um ato no pleno exercício de sua liberdade pessoal.
A fé tem necessidade de um ponto de apoio na realidade concreta, o que não significa que possa ser deduzida dela. Ao analisar a realidade de Cristo, a cristologia latino-americana pôs a ênfase num Jesus, e não em outro, com contornos concretos e distintos dos de outras cristologias (sensível para com os pobres, denunciador e desmascarador de ídolos, misericordioso até ao fim...).
Cristo aparece como a chave para interpretar e resolver, em princípio, os problemas totalizantes da existência humana: sentido e sem sentido da história e acesso positivo a ela através do amor.
As primeiras reflexões sobre o ponto de partida do pensamento teológico e também cristológico de D. Solle puderam fazer entrever o centro da sua Cristologia: esta evolui no horizonte da questão misteriosa da salvação do homem atual, questão que se expressa concretamente na sua busca de identidade, de coincidência consigo mesma e com o seu mundo.
Do ponto de vista da história do espírito, esta fé levaria toda a estrutura da Igreja a um processo de conversão. A própria estrutura seria evangelizada, pois Puebla ensinou muito bem que a evangelização é um chamado à participação na comunhão trinitária (n. 218)[6].
Esta situação atual do homem está fundada na afirmação da dialética do caráter insubstituível (segundo o idealismo e o cristianismo) e do caráter substituível (segundo o positivismo e o materialismo) do homem.
A fé, segundo o Antigo Testamento, liberta a razão, à medida que lhe permite alcançar, coerentemente, o seu objeto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema em que tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência.
O conhecimento da fé não anula o mistério: torna-o apenas mais evidente e apresenta-o como um fato essencial para a vida do homem: Cristo Senhor, “na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime”, que é particular no mistério da vida trinitária de Deus.
Na origem do nosso ser crente existe um encontro, único no seu gênero, que assinala a abertura de um mistério escondido durante tantos séculos (cf. 1Cor 2,6; Rm 16,25-26), mas agora revelado:

Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (Conc. Ecum. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a revelação divina Dei Verbum2).

Na nova evangelização, em Curso na América Latina, busca-se uma nova integração do ser humano aos valores da participação, da liberdade, da criatividade, da convivialidade aberta em todas as direções, realidades essas historicamente negadas às grandes maiorias.
Pode-se constatar, historicamente, que as diferentes interpretações da teologia da libertação latino-americana parecem coincidir neste ponto: uma cristologia que passe por cima do Jesus histórico se converte em abstrata e, por isso, em princípio, manipulável e, historicamente, alienante.
Há, com efeito, grave risco de “alienação” e de “ideologização do cristianismo” quando se pensa o sobrenatural como algo fora da história, como uma realidade agregada ao natural ou como um segundo andar do edifício humano e não devido ao ser humano. Diz-se que o cristianismo tem a ver com o sobrenatural e não com o natural. A ação dos cristãos deve inserir-se no sobrenatural que vem comunicado pelas instituições do sagrado: sacramentos, celebrações, meditação e assimilação da revelação escriturística, atos de fé, esperança, caridade e todas as demais virtudes exercidas no interior da incorporação eclesial.

A teologia trata do sobrenatural e as ciências do natural; a razão “meramente natural” se exercita no natural e a razão “iluminada pela fé e banhada pelo sobrenatural” se ocupa com as realidades sobrenaturais. .

O típico de Jesus, enquanto histórico, é seu estar situado e comprometido numa situação que oferece várias semelhanças estruturais, tanto no que diz respeito a uma expectativa de libertação, como à profundidade do pecado da situação. É o Jesus histórico quem torna inequívoca a necessidade, o sentido e o modo de conseguir a libertação.
O ser humano é fundamentalmente consciência e liberdade situada, mas que transcende a sua própria situação. Como consciência possui-se a si mesmo inteligentemente. Como liberdade, entra em comunicação com-os-outros por decisão e escolha. Esta relação-com-os-outros, esse ser-com-os-outros se dá no mundo, na história.
Na modernidade a “liberdade de” é, com muita freqüência, entendida em vista de uma “liberdade para si”. Na revelação cristã, esta “liberdade de “é compreendida articulada com a liberdade para Deus” e “para o outro”. Essa dimensão é tão profunda na liberdade cristã, que alguns teólogos radicais forjaram a bela definição de Jesus, como “aquele-que-é-totalmente-para-os-outros”.[7]
Esses valores pessoais são construídos em solidariedade e em comunhão com a luta dos oprimidos, a quem se negam chances de personalização.
A teologia da libertação insiste no fato de que existe uma só história na qual se dá salvação ou perdição[8]; a forma de opressão e de libertação da graça e do pecado aparece quando se coloca a questão ao nível social que é hoje a instância mais determinante de nossa percepção da realidade. Para poder identificar a presença de pecado ou de graça na sociedade, esta teologia se obriga a uma análise, a mais rigorosa possível, dos mecanismos de funcionamento desta sociedade.
É neste ponto que a teologia da libertação assume certo referencial teórico de interpretação da história e da sociedade que lhe permite melhor identificar o que é presença de injustiça, opressão, negação de participação ao povo e presença de relações mais justas, participadas e fraternas. A teologia da libertação deu preferência em função desta perspectiva de fé, à análise dialética elaborada pela tradição revolucionária e crítica, sem com isso assumir todas as implicações de ordem filosófica (materialismo dialético) e estratégicas (luta de classes) presentes, por exemplo, no marxismo histórico.
Como se me torna possível chegar à certeza de que “Deus” não é apenas uma hipótese, uma “idéia”, mas sim um “realidade”? Já ficou claro que as respostas às grandes questões básicas da realidade não devem ser procuradas no terreno da teoria pura, mas sim – em princípio dando-se razão a Kant – através da prática vivida e refletida. Portanto não por operações teóricas da razão pura. Mas também não por sentimentos irracionais, nem por puras emoções. E sim com base em uma decisão e atitude confiante e racionalmente responsável.
Com tal atitude de confiança, eu posso, apesar de todas as dúvidas, experimentar a realidade de todo o real, posso aceitar a identidade fundamental, o valor e o sentido do que existe – realidade que de início é aceita com naturalidade, mas que freqüentemente fica exposta a dúvidas filosóficas. E com esta atitude amplamente reacional e responsável eu posso aceitar o ser-real de Deus – exposto a dúvidas ainda maiores -, a razão última de tudo quanto existe. E isto exercerá um efeito sobre toda minha experiência, sobre todo meu proceder e agir.
Entre a liberdade cristã e moderna, há uma oposição de direção. O vetor principal da liberdade moderna orienta-se para o próprio sujeito, enquanto o vetor da liberdade cristã aponta para outro. A liberdade cristã é centrífuga, enquanto a moderna, centrípeta. 





1.2 – COMPREENSÃO DA REVELAÇÃO E O CONTEÚDO DA FÉ

Entre a Não-Verdade e a Verdade não há uma relação lógica de causa e efeito (relação de afirmação e negação), mas uma relação ontológica de possibilidade (relação de fundado a fundamento). A Não-Verdade torna-se, sob a ação da liberdade, a possibilidade de toda a aparição da Verdade, a ausência fundamental, condição de toda a presença. A obscura claridade que invade o mundo e as coisas é, na história, o reflexo do mistério do Ser que possui o homem.
O critério de autenticidade de ambas as liberdades é também diferente. Para a liberdade da modernidade é freqüentemente a auto-satisfação, a auto-realização. A liberdade cristã a encontra na sua relação direta com a pessoa e prática de Jesus, abandonando tudo que se opõe a Ele. “Revesti-nos do Senhor Jesus” (Rm 13,14), “purificai-vos do velho levedo” (1Cor 5,7), “deixai as obras das trevas” (Rm 13,12).
A libertação pessoal só guarda sua altura humana e evangélica se conseguir articular-se com a libertação social. Nas comunidades se insiste que o novo deve ser vivido já agora, certamente de forma seminal, mas verdadeiramente; caso contrário, predominará o velho esquema, e a libertação continuará a ser apenas uma utopia sem suas antecipações históricas.
O objetivo fundamental que a teologia persegue é apresentar a compreensão da Revelação e o conteúdo da fé. Assim, o verdadeiro centro da sua reflexão será a contemplação do próprio mistério de Deus Uno e Trino. E a esse chega-se refletindo sobre o mistério da encarnação do Filho de Deus: sobre o fato de Ele se fazer homem e, depois, caminhar até à paixão e à morte, mistério esse que desembocará na sua gloriosa ressurreição e ascensão à direita do pai, de onde enviará o Espírito de verdade para constituir e animar sua Igreja.
Em primeiro lugar, Puebla reconhece e agradece – “vemos com prazer” – que existe uma busca da face sempre nova de Cristo[9] que cumula seus legítimos anseios de libertação integral” (n. 173). Com isso reafirma a legitimidade e necessidade de existir uma imagem “nova”, apesar de séculos de evangelização, e que é essencial que essa imagem nova seja “libertadora”, e elogia Medellín por tê-la propiciado.
Em segundo lugar, Puebla recolhe muitos traços de Jesus de Nazaré – “Jesus Histórico” – que, se pressupõe, são os que vão formando o conteúdo da nova e desejada imagem de Cristo. Por um lado; e em seu conjunto, evita analisar profundamente os traços historicamente conflitivos de Jesus – só se menciona que “sua presença desmascara o maligno” (n. 191) – mas, por outro lado, apresenta outros traços sumamente importantes: seu anúncio do Reino de Deus, as bem-aventuranças (embora só sejam citadas na versão de Mt, não na de Lc) e o sermão da montanha como a nova lei do Reino, o chamado a seu seguimento, a vida interior de Jesus que inclui a disponibilidade à rejeição dos homens e à tentação, sua entrega à morte como servo sofredor de Javé e sua ressurreição (n. 190-195)[10]
Como falar do Deus verdadeiro num continente onde reinam os ídolos da dominação, da injustiça, do poder econômico sacrificando milhões de pessoas? Numa palavra, uma teologia da revelação na América Latina não tem sentido a não ser na perspectiva do Deus da vida em radical confronto com os ídolos, causadores de morte.
Leonardo Boff reflete essa questão da América Latina, dizendo o Vaticano II haver deixado claro que não é o mundo que está na Igreja, mas a Igreja no mundo, sinal sacramental de salvação e unidade.

Na AL se colocou a questão: qual é o “mundo” onde deve estar preferente a Igreja como sacramento de salvação? É o mundo dos pobres, o “submundo” onde vivem as grandes maiorias do nosso povo[11]

O Vaticano II fala muitas vezes do mistério da salvação; aqui se entendeu concretamente a salvação como o processo de liberdade integral, que conhece várias mediações, a econômica (libertação da fome), a cultural (libertação do analfabetismo e da ignorância), a política (libertação da marginalização), a religiosa (libertação do pecado como rejeição de Deus e de seu projeto histórico).
De fato, na Bíblia, a luta se trava contra a idolatria, não simplesmente na forma grotesca de religiões antigas, mas como tentação permanente de todo ser humano. Consiste a idolatria fundamentalmente em pôr a confiança definitiva em alguém ou algo que não seja Deus ou jogar com a ambigüidade de dirigir-se a Deus e, no fundo, apoiar-se em outra realidade, em outros motivos. O Deus da vida e os ídolos da morte são apresentados como dois caminhos antagônicos (1 Rs 18,21). A atitude idolátrica apresenta-se com três notas: confiança e submissão, fruto das mãos humanas e exigência de vítimas.
Com efeito, são ídolos por serem obras das mãos dos homens, realidades finitas, mas absolutizadas, adoradas e às quais se sacrificam seres humanos, das maneiras mais diversas. Cercam-se tais ídolos de ritos sagrados, com sua leva de sacerdotes e erigem seus templos.
Puebla recorre a tal linguagem para denunciar a injustiça social no continente, elencando os principais ídolos: “A riqueza, o poder, o Estado, o sexo, o prazer ou qualquer criatura de Deus, inclusive seu próprio ser (do homem) ou sua razão humana”.
Finalmente, Puebla retoma o problema da presença atual de Cristo na História e do acesso desta a ele, e em formulações realmente vigorosas e rigorosas que, no nosso entender, não têm paralelo em outros documentos eclesiais contemporâneos. Lembra o tradicional: que Cristo está presente em sua Igreja, principalmente na Sagrada Escritura, na proclamação da Palavra, nos que se reúnem em seu nome e nas pessoas de seus pastores. E conclui “quis identificar-se num gesto de ternura especial, com os mais fracos e os mais pobres”.
Incutindo-lhes esperança para sacudir as opressões que suportam, o Espírito é o pai dos pobres. Fá-los sonhar sempre com um mundo reconciliado e justo e lutar para realizá-lo.
A história constitui um caminho que o Povo de Deus há de percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à ação incessante do Espírito Santo (cf. Jó 16,13).
A difusão do Sagrado pertence ao princípio da história. A estrutura temporal do ser convida-nos a rever esta concepção de um Deus eterno, dominando acima da história. É através do tempo que o homem deve reencontrar Deus. Longe de ser o Absoluto presente que paira acima da história, o “nunc stans” eterno, produto duma representação que procura justificar-se a si própria, Deus não seria este eterno Para-Diante que faria sinal ao homem na abertura do seu ser para o futuro?
Os pobres, há tempo, se preparavam para a vinda do Salvador. Sua esperança não fora sufocada nem mesmo pela falta de perspectivas de mudança. Agora o Messias está chegando e eles colaboram para sua vinda. Dispõem-se a fazer a sua parte. Alegram-se com o que vêem acontecer. Sabem perceber o significado salvífico do que sucede. Eles captam as mensagens de Deus misturadas nos acontecimentos.
Ora, assumindo como termo da transcendência humana o horizonte mundano do CUIDADO, não se decida ainda nada, nem um sentido positivo, nem num sentido negativo, sobre uma possibilidade de estar-em-relação com Deus.
Ou melhor, prossegue Heidegger, atinge-se, antes de mais, uma noção suficiente da realidade-humana e, tido em conta o existente, pode-se, desde então, pôr a questão de saber o que é, ontologicamente, a relação da realidade humana com Deus.
É preciso cristianizar nossa compreensão de Deus. A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a ação de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter conosco, servindo-se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos.



[1] LOPES, Paulo César Carneiro. Utopia Cristã no Sertão Mineiro – Uma leitura de “A hora e vez de Augusto Matraga” de João Guimarães Rosa. Petrópolis, 1997. Vozes. Pág. 17. “O termo criado por Paul Tillich” -, como em nota de rodapé busca esclarecer Paulo César Carneiro Lopes – “que, num diálogo  com Horkheimer, sobre o sentido do conceito razão, concorda com aquele sobre o fato de que através da história do pensamento duas definições correram paralelas, uma referindo-se à totalidade do ser e outro fazendo dele uma abstração com finalidade técnica”. O primeiro sentido predominou na tradição clássica de Parmênides até Hegel e o segundo tornou-se predominante desde o colapso do idealismo alemão e o surgimento do empirismo inglês, e ainda é o que predomina hoje. Por isto é que agora se faz necessário falar em razão ontológica. 
[2] Cf. Jó, 8,32
[3] Assim, a experiência religiosa dos cristãos apostólicos constitui uma historia dependente da revelação e da salvação.
[4] Kant apud Hans Küng, O princípio de todas as coisas, 2007, pág. 73.
[5] Idem, idem.
[6] Isso se aplica, fundamentalmente, à Igreja como instituição.
[7] Vale ressaltar a relação “aquele-que-é” é o em-si; “para-os-outros”, liberdade.
[8] Cf. G. Gutiérrez, Teologia da libertação, Petrópolis 1976, p. 68-72.
[9] A sagrada face é a do outro. É a passagem da solidão para a comunhão, a companhia... Não é suficiente jardim para fazer o homem feliz. Ele precisa de alguém para dividir o olhar, sentimento, afeição, alegrias e preocupações. Como é importante a presença do outro na vida! Não menos importante é perdoar as presenças que não nos fizeram bem, que desarrumaram nosso lar, abrindo feridas em nossas emoções... E por certo, Senhor, convém lembrar, com esmerado carinho, das pessoas que há tempos estão do nosso lado, preenchendo vazios, ajudando-nos a superar solidões e carências. São pessoas que merecem muito mais que só cobranças, merecem misericórdia e compaixão. (FERREIRA, Manoel. Pai-Nosso que Estais nas Águas – publicado por www.jknet.com.br, Diamantina)   

[10] Em outros capítulos, Puebla sublinha também outros traços do Jesus histórico: sua pobreza (n. 1141), sua exemplaridade de bom pastor (n.681) e seu caráter libertador (n.1183, 1194).
[11] BOFF, Leonardo. Do lugar do pobre. Vozes. Petrópolis, 1984. Pág. 31

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