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terça-feira, 24 de novembro de 2015

O ÚLTIMO BOÊMIO - Manoel Ferreira Neto.



Vira-lata. O último boêmio.
Será? Seria necessário sobre isto pensar, refletir quanto à profundidade da boêmia do vira-lata, o que ela traz aos homens de mensagem, cuja espiritualidade contribua para as transformações íntimas, para as mudanças de condutas e posturas éticas e morais, mostrando-lhes seus valores, virtudes essenciais. Pelas ruas, alamedas, becos e avenidas, vai ele derrubando as latas, revirando o lixo em busca de comida, de saciar sua fome, por anos, décadas.
Todo esse apego do homem ao cachorro, seja vira-lata, seja de raça, é porque o cachorro considera o seu dono o primeiro homem do mundo, o homem o considera o seu único amigo leal e fiel, uma amizade abstrata, pois que só o homem confessa-lhe suas dores e sofrimentos, angústias e tristezas, o cachorro ouve, não sei é se compreende, entende - ao seu modo fá-lo, mas qual seria -, seria preciso ser cachorro para sabê-lo.
Mas para uma criança, criatura tão necessitada de todos, amor, carinho, ternura, dedicação, solidariedade, sentir-se protegida, amparada, tão frágil e sozinha, um cachorro é um teste de amor desinteressado da parte dela... é ter uma outra criatura que dependa – afinal! – dos seus cuidados. 
Antes de mais nada, um cachorro serve para a gente falar sozinho sobre os medos, dúvidas, sonhos e utopias, alegrias e felicidades, sentimentos que tememos não ser compreendidos e entendidos, respeitados e considerados, sirvam de base para censuras e risos, desconfianças tantas que desembocam em afastamento, preconceitos, discriminações. Que o digam os errantes vagabundos de estrada, miseráveis das ruas, avenidas, nas calçadas, minhocões das metrópoles e megalópoles, a quem pode faltar tudo na vida, menos um cachorro. Há quem diga que quanto mais forem a miséria e pobreza mais se encontram filhos e cachorros, galinhas; até onde pude comprovar isto é verdade inconteste.                                                                                                                                                                                                       
E os velhinhos que ficam sem família, esquecidos em asilos, sem a presença do cachorro para dizerem da solidão, da ingratidão dos familiares, amigos, filhos.
E as crianças de apartamento que jamais tiveram um cachorro!
Cachorro... O amigo do homem, dizem... Tive na infância dois cachorros, Bolinha, de pelo branco como a neve, Museu, de pelo preto como as penas do urubu, mas não me lembra se com eles conversava, se lhes dizia de mim, confessava-lhes tudo. Cuidava bem deles, alimentava-os, dava-lhes banho, fazia questão de limpar suas casinhas. Bolinha fugiu. Museu morreu de raiva. Por sempre serem amarrados, não faziam festa quando saía, voltava para casa, viajar, após alguns dias retornar. Latiam euforicamente, só isto. Mas o meu papagaio assim que batia o portão, entrando em casa, depois de alguns minutos fora, dias de viagem, gritava a plenos pulmões: “Pretinho, filhodaputa...”, assim o ensinei.
Para mim, o papagaio era mais importante do que o cachorro, falava o que lhe era ensinado, mas usava palavras, a palavra para mim sempre foi o mais importante na vida – a “fala” do papagaio emocionava-me, só ele tinha o  dom da “fala, os outros, animais, aves eram destituídos dela. Meu amigo era o papagaio, fiel e leal.
Ao contrário de meus dois cachorros que viviam presos na corrente, meu papagaio era livre, vivia nas árvores do quintal de  minha residência, retornava ao seu  poleiro, quando sentia fome, no crepúsculo para dormir. Pela manhã, antes de começar suas aventuras pelas árvores, gritava a plenos pulmões: “Pretinho... Tudo bem, meu amor... Como vai, querido?” Dava-lhe eu a sua  refeição matutina, goiaba, mamão, manga... Voava... Começava o seu dia.
Neste mundo de tantos espantos, admirações, cheio das mágicas de Deus, das arbitrariedades e gratuidades dos homens, das violências e desrespeitos da estirpe e raça, o que existe de mais sobrenatural, de mais transcendente é o silêncio do cachorro e a tagarelice do papagaio.
Pergunto-me, leitor amigo, quem considera minhas letras questionamentos acerca da vida, desejos de completude e sublimidade, por que o uivar dos lobos, o latir dos cães, a fala dos papagaios, os trovões, os raios constituem o pano de fundo para as cenas de horror? Pois quando o medo é muito, faz-se um silêncio na alma. E nada mais existe.
Cada dia é preciso escrever sobre uma coisa nova – mas novidades, as últimas, só as há nas vitrines de butiques, nas lojas de shoppings, nos catálogos de acessórios domésticos, nos menus de restaurantes, nos belíssimos e caros anúncios de medicamentos caros.
Estas é que importam, fascinam, estesiam, extasiam, dão água na boca.
Passado sem presente... Futuro sem presente, passado... Presente sem futuro. Papagaio sem palavras, cachorros sem latidos.

Eis a vida, eis o mundo. Alguma coisa em mim mudou, não sei de que se trata, sei que agora posso dormir o sono dos justos, aqueles justos que dizem: “A vida... É preciso compreendê-la...”.     

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