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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

MADRUGADA DO GALO - Manoel Ferreira Neto.


Uma e meia da manhã. Pelo que me conste, observei algumas vezes, horário de galo cantar é quatro e meia. Este imbecil me acorda cantando. Não se pode dormir mais tranqüilo e sossegado, o galo não deixa. Nossa modernidade está deixando todos os séculos passados com o queixo caído. Cachorro dorme em silêncio, galo canta em horário incomum. Diabo!
Assim que acordei, murmurara: “Nossa! Dormi mesmo profundamente. Já são quatro e meia, respondendo-me a mulher: “Meu amor, é uma e meia”. Disse um pouco aturdido: “Mas por que este galo está cantando?”. Embora irritado, estava com vontade de fazer xixi. Fui dormir às onze e meia da noite, fora um dia cansativo, se se for pensar mesmo comi no desjejum “canela de cachorro”, o que significa que andei pelas ruas da cidade o dia inteiro, resolvendo algumas responsabilidades sérias, felizmente que tudo fora feito como manda o figurino. Pensava dormir a noite inteira. Levantar-me dis-posto, sereno, sentir-me pronto para os afazeres, um dia com efeito compensador.  Não, o galo me vem cantar ao pé do ouvido a uma hora da manhã. Só queria saber que dera na teia da vizinha para comprar logo este galo. Não poderia ter sido outro?
Saí do banheiro, tomei um gole de café, sentado na poltrona da cozinha, ainda um pouco grogue por haver sido acordado sem esperar. O que me faz dormir sempre que acordo de madrugada é tomar leite, mas havia acabado.
Alguma coisa está acontecendo de muito séria neste galinheiro. Talvez a galinha tenha ficado com o ovo atravessado, está sofrendo muito com esta situação inusitada, também não consegue dormir – que galinha iria conseguir dormir com o ovo atravessado? Creio que nenhuma. O galo está fazendo a sua parte: canta para acordar alguém da casa e correr ao galinheiro para socorrer a galinha. Aí, mais uma cantada. O que está de fato acontecendo? Isto não é normal. Alguma outra franga está deprimida ou angustiada, ficou o dia inteiro no puleiro, sorumbática. De soslaio, o galo olhou, esperou que descesse, começasse a ciscar. Não, permaneceu no puleiro. Talvez até mesmo as outras galinhas, pintos, galos hajam percebido, mas não deram tanta confiança assim, hoje é comum até os galiformes estarem tendo crises, pois que as pessoas só comem ovos de granja; para que estão botando? Para nada. Os ovos estão perdendo no ninho. Antigamente, pela manhãzinha, clima suave e sereno, alguém corria ao galinheiro, apanhava os ovos que acabavam de ser botados, cozinhavam. Ouvia-se dizer: “Que ovo gostoso” ou “Nossa!... Quê delícia de ovo!”. Não se houve mais estas palavras, estas alegrias e felicidades; com o ovo de granja impossível externar tanta satisfação, alegria.
O estado emocional dela a cada momento se agrava mais. Durante o dia ainda dera umas cochiladas rápidas, tirara uma soneca não menos que rápida, mas agora não consegue dormir, os olhos permanecem arregalados, as dores de não mais estar servindo os seus donos pela manhã com seus ovos deliciosos. Melhor morrer. Com efeito, não tem graça a vida de uma galinha, se os seus ovos não servem para mais nada. Galinha inútil. Cachorro que não late é aceitável, papagaio que não fala é inteligível. Mas galinha cujos ovos – será mesmo este o pronome relativo para a situação? – não servem mais, não tem mais qualquer sentido. Os galináceos têm apenas duas funções na vida: botar ovos ou ser almoço no prato dominical, como se diz “no prato dos mineiros”. Nem isto mais. Galinha caipira aumenta o colesterol que é uma beleza. Come-se apenas frango de granja. Agora só a morte natural por doença ou velhice. Mas passar a vida inutilmente ciscando, trepando no puleiro, correndo do galo, isso é deprimente.
E se esta galinha mesma terá vida longa, que tédio ficar no galinheiro inutilmente ciscando? Com efeito, tem suas razões mais que plausíveis para sentir-se deprimida, não é para menos. O que fazer? O galo não entende de veterinária, não tem a mínima noção de que medicamento pode ajudá-la. Mas isso nem é caso para um farmacêutico, é caso para um psiquiatra, psicólogo. Só eles entendem dessas crises existenciais. Se pudesse dizer alguma coisa, mas não, calada, sorumbática. Aliás, seria até uma contribuição à psiquiatria, psicologia, uma galinha deprimida, iriam cair na gargalhada, no reino animal também tudo se tornou possível em nossa modernidade. Terapia de galinha. Uma coisa inusitada no menu da modernidade.
Tem mais é que cantar a uma hora da manhã, acordando a vizinhança toda, e todos aturdidos, pensando até estão sonhando, um galo cantando insistentemente a uma hora da manhã. Pensa que acordou, mas continua dormindo, aliás sonhando com um galo frenético, desesperado, cantando neste horário. Precisa pedir socorro. Alguém que atine com alguma coisa estar acontecendo muito séria. Ninguém atina com isto, o galo vai continuar cantando até a aurora deste novo dia. Aí a vizinha vai perceber alguma coisa de errada. Com efeito, está doente, vai morrer logo, é uma galinha mais velha. Normal isto. Não pensara nas dores contundentes que se lhe perpassa o corpo inteiro, as penas se eriçam, calafrios ininteligíveis, devido ao fato de que os seus ovos não servem para mais nada, não será comida dominical de mineiro.
Chamar um veterinário para uma galinha? De forma alguma. Servirá de chacota do veterinário, os vizinhos irão comentar o resto do dia, no quintal só há um galinheiro, não há cachorro, gato, papagaio, só galinhas, a presença de um veterinário não teria outra razão. E se a vizinha descobre que não está doente, mas deprimida, angustiada, entristecida, desesperada com a sua situação, com a situação dos galináceos na modernidade, chamando um psiquiatra? Aí não é sandice apenas superficial, mas loucura das bravas. Ir até a farmácia veterinária para comprar calmantes para galinha em crise existencial, uma baita depressão. Loucura. O que as pessoas não vão dizer? Não tem mesmo cabimento isto.
Aí, o galo continua cantando. Diabo! Será que a vizinha tomou algum comprimido para dormir, simplesmente apagou, nada se lhe pode interferir no sono, nada se lhe acorda. Fosse assim apenas, mas o marido, algum dos dois filhos. Não. Ninguém está ouvindo a cantação do galo. Não vou ao portão da casa, tocando a campainha com insistência para dizer ao proprietário da casa ou mesmo à vizinha, que alguma coisa de muito séria está acontecendo no galinheiro, o galo começou a cantar a uma da manhã, porque me vão escorraçar, sujeito mais inconseqüente, acordar todo mundo para dizer que alguma coisa errada está havendo no galinheiro, o galo começou a cantar a uma e meia da manhã. Quanto mais que a vizinha é muitíssimo fofoqueira, Deus me livre! Tudo é motivo para fofocar. Dependendo do que for, vasculha a rua de cima abaixo para dizer o que acontecera, o que sucedera. Antes de o dia clarear, estará comentando, começando na padaria. De forma alguma.
O galo continuará cantando. Sinceramente, não fosse minha mulher também se assustar com um galo cantando àquela hora, diria que, ou estou sonhando comigo sentado na poltrona da cozinha, fumando, encafifado com um galo que começa a cantar a uma e meia e continua cantando hora e meia depois, ou estou ficando mesmo senil, e a a-nunciação da senilidade é um galo cantando num horário indevido à espécie.
Talvez estivesse criando uma crônica, uma sátira à modernidade, e não ficando senil, e a mais interessante seria a galinha estar deprimida no puleiro, sofrendo dores ininteligíveis com a inutilidade da espécie, e um galo pedindo socorro, e não propriamente ficando senil. Impossível ficar senil aos sessenta e dois anos. Sinceramente, em todos esses anos de vida jamais pensei que fosse possível um galo cantar desse jeito pela madrugada a fora. Talvez nem seja isso, não seja que a galinha entrou em depressão, e sim que o galo ensandecera, engoliu uma cigarra lírica. Aí também é ridículo: galinha engolir cigarra lírica. E por que teria ensandecido? No seu ponto de vista, na sua visão da vida galinácea, o que anda in-vertido, de ponta-cabeça no mundo, para ficar louco? Alguma coisa. Terá sido que todas as galinhas chegaram à mesma conclusão da inutilidade de suas vidas, os ovos já não serviam as mesas em todos os horários do dia, galinha caipira, hoje os homens só comem ovos de granja e comem também frangos de granja, isto re-sultando em abstinência sexual, os galos já não têm quaisquer chances, e isto para a espécie não é nada agradável, ensandece mesmo. A minha inspiração para a crônica nascera neste dito popular, diria mais interrogação popular: “levantou com as galinhas?”, dizendo que levantou muito cedo, e, em contrapartida, com outro dito: “levantou com os galos e dormiu com as galinhas”. É o galo que acorda primeiro. E são as galinhas que se re-colhem ao puleiro mais cedo.
Não estou criando nenhuma crônica. Estou simplesmente incomodado com a insistência deste galo. Como pode! Não vejo nenhuma luz acesa, só as do poste. Se estivesse incomodando alguém, com certeza já teria levantado, acendido a luz, começado a xingar, alguns de modo chinfrim com palavrões do arco da velha. Ninguém. E o galo continua cantando pela madrugada a fora, querendo chamar a atenção. Está louco. Pede que o socorram, levem-no para longe de galinhas, galos, internem numa veterinária especializada em galo louco. Quer morrer tranqüilo, longe de galinhas, só na companhia dos galos que também são loucos, sente-se em casa ao lado de todos.
Não deve haver solidariedade apenas entre os homens – retificando sem excluir, é o que não há entre eles, nem esperanças e sonhos -, solidariedade é praticada ilimitadamente, ainda mais no que diz respeito aos animais. Um galo ensandecido e ninguém dá a mínima, é como se nada estivesse acontecendo.
Vou até ao quarto, acordo minha mulher e pergunto se o galo para ela continua cantando ou isso está acontecendo apenas comigo, quem está ficando despirocado sou eu. Acordo a uma e meia da manhã com idéia fixa de um galo cantando, pensando estar havendo alguma coisa de errada no galinheiro da vizinha, a galinha entrou em depressão devido ao fato de que os seus ovos não têm mais quaisquer serventias no prato dos homens, são ovos caipiras, é a primeira indagação, o intróito da sandice absoluta, a anunciação, seguido da loucura do galo, enfim com a crise galinácea dos ovos inúteis resultara na sandice do galo.
Vou descer. Não é possível. O bicho está precisando de ajuda, a coisa não está nada boa para ele. Cabe-me chamar a vizinha, dizer-lhe que investigue o que está acontecendo, o galo está cantando muito, sem me importar que antes do dia amanhecer estará fofocando que  enfia o dedo na campainha para dizer alguma coisa estar errada no galinheiro, a galinha está deprimida e ele pede ajuda ou o galo ensandeceu.
Pensando bem, não. Deixe o galo cantar à vontade. Há certas coisas que são boas de evitar. É constrangedor acordar alguém numa situação desta. Terá todas as razões do mundo para se irritar. Tirar uma pessoa da cama, depois de um dia de muitos problemas, trabalho, dificuldades quotidianas, preocupações, para dizer uma coisa desta é realmente brincar com a paciência do outro. Merece o seu sono, embora não importe se seja profundo ou não, se para que acontecesse calmantes foram tomados. Precisam descansar um pouco, fugir de tudo que acontece, sentir-se mais dis-posto. Não há corpo que agüente tudo em cima dele.
Canta, galo! Aliás, já estou me acostumando com isso, uma coisa inusitada, excêntrica serve para espairecer as coisas. Há quando acordo de madrugada, não consigo dormir, venho para esta poltrona, fumo, um silêncio sepulcral. Nem cachorro late. Impressionante isto: é uma cachorrada pelas ruas durante o dia. Outro dia mesmo contei dez cachorros deitados. Em tom de cinismo: “também a cachorrada merece a sesta”, “a cachorrada está tirando uma soneca após os restos de comida no lixo”. Penso em tantas coisas, lembra-me isto, recorda-me aquilo. Passo a noite no silêncio de início da terceira idade. Nem grilo ouço. Silêncio absoluto. Esta é a” madrugada do galo”. Enquanto ele canta e eu aqui fico a elucubrar as razões de um galo acordar a uma e meia da manhã, quando o horário de práxis é às quatro e meia, não pára um segundo de cantar, alguma coisa está errada no métier galináceo, ou o galo ensandeceu, ou a galinha entrou em depressão, e ele sendo o companheiro está pedindo socorro: “o galo pede socorro!”. Numa manchete de tablóide seria interessantíssimo, eu mesmo leria, embora não leia jornal de forma alguma, isto não de agora, devido aos sensacionalismos, corrupções, drogas, assassinatos, etc., etc., mas desde sempre, nunca apreciei ler jornal ou revista. Matéria desta iria chamar-me atenção.
Um galo me diverte numa madrugada insone. Já são quatro e trinta e dois. Durante três horas o galo da vizinha canta e canta e canta. Talvez nada disso que antes haja imaginado como razões seja real, em verdade o galo quer se mostrar, quer tornar-se o galo mais importante senão deste bairro apenas, mas de toda a nossa cidade pacata, a pacatice é tanta que ninguém dá a mínima para o galo cantando, quer ser personalidade da espécie. A sua intenção é executar uma peça dramática, a ópera do galo. Numa madrugada mais do que pacata, galo acorda a uma hora da manhã, a inspiração baixou enquanto dormia, e, sendo muito presente e forte, acordou de imediato e começou a compor a sua “opera do galo”. O galo está com idéia fixa de artista, empreende todos os esforços para que a componha com engenhosidade e arte, torne-se a primeira ópera do galo neste mundo velho sem cancela e porteira.
Felizmente que alguém ouve, caso contrário seria trabalho perdido, sua ópera nunca existiu, não é artista coisa nenhuma, galo nenhum canta com constância. Ouço-lhe a ópera, intuo-lhe os sentimentos e emoções, os instintos, percebo-lhe o desejo de se extravasar todo, mostrar aos homens o que é isto de re-nunciar os ovos caipiras em detrimento dos de frango de granja, os sentimentos deprimentes que todas as galinhas sofrem, as dores que sentem com a vida inútil que levam, não são comidas mais nos pratos dominicais, têm de viver muito mais, se antes a morte não vier devido a alguma doença da espécie. Enquanto botam ovos, são pratos, a vida segue em harmonia, enfim os galináceos servem é para isto mesmo, mas sem isso, que sentido tem o reino galináceo? Nenhum.
O galo quer mesmo exteriorizar todas estas questões que os galináceos sofrem e ninguém dá a menor atenção. Quer que a sua ópera seja ouvida por todos os homens, por toda a comunidade, quer que os homens sintam que a vida num galinheiro também tem sua realidade difícil de ser ciscada, que também sofrem e sentem dor. Galo nenhum fizera isto em toda a história da humanidade, coube-lhe o dom de fazê-lo numa madrugada em que acorda, sentiu forte e presente a inspiração, felizmente que acordou de imediato, e pôs-se a compor a sua peça com garra e determinação, com instinto mesmo de conseguir realizar o para quê viera ao mundo, mostrar e identificar a vida dos galináceos no tempo moderno, diante da injustiça de deixá-las abandonadas, já não servem para mais nada, enfim os ovos, a carne aumentam bastante o colesterol, os riscos de enfarto são inúmeros, de outras doenças também. O que não acontece com as galinhas de granja, fazem bem, rejuvenescem as pessoas, fá-las sentir mais serenas e calmas.
Enquanto a ópera não for executada com primor, nada for esquecido dos sofrimentos dos galináceos, continuará cantando. Quando isto acontecer, nada mais irá lhe interessar, os ovos das galinhas não servem mais, a carne de galo caipira tampouco, mas a ópera de um galo que precisava mostrar ser ainda mais útil do que todos os outros de hoje e de ontem  serve e muito para os homens, enfim a música tem uma dimensão espiritual elevadíssima, além de suprema e divina. Uma ópera do galo, então, coisa que jamais ouve, nem mesmo na literatura, nas artes, é coisa inédita. Num mundo tão pacato como este, pelo menos na cidade em que vivo, música assim irá despertar sentimentos os mais recônditos.

Continuarei aqui sentado, ouvindo o galo cantar numa madrugada qualquer de minha vida.                        

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