Total de visualizações de página

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

ESTRIBO ÀS ABAS DO TEMPO Manoel Ferreira


Creio que algumas pessoas preferem a anedota, faz rir, diverte, espairece as idéias, desvencilha-se das pré-ocupações diárias, à re-flexão, difícil é saber das dores e sofrimentos, problemas que habitam, buscar soluções cabíveis, trans-formar a vida, encontrar tranqüilidade e paz.
Acordei com idéia fixa de dedicar algumas palavras à anedota, divertir as pessoas, alegrar os leitores, o mundo está virado de cabeça para baixo, só angústias, tristezas, crises, medos, violências, corrupções. Faz muito bem uma anedota.
Tomando o banho matutino, não me ocorreu nada que fosse sobremodo fixo neste mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a lápide de uma sepultura.  Por que isto de dedicar letras à anedota era “idéia fixa”, se nada é fixo; era, sim, um desejo presente e forte de mudar os horizontes das idéias que me habitam sobre a vida, as esperanças de liberdade, de espiritualidade. Assim, não sendo idéia fixa, como iria criar uma anedota, trans-crever alguma ipsis litteris que ouvira contar, que li nalguma revestinha especializada. Só poderia criar a anedota, se fosse idéia fixa, dizem que “carro apertado é que anda”, a idéia simples e pura necessitaria de se libertar da fixidez, voarem por outros campos, vales, florestas, viajarem nas nuvens tranqüilas e serenas.
Todavia, pensava comigo, enquanto ensaboava o peito, importaria dizer, quando tomasse da pena para escrever, esclarecer aos leitores que a obra seria escrita com pachorra, com a pachorra de um já desafrontado da brevidade da primeira década, do século XXI, obra supinamente filosófica , de uma filosofia desigual, austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, não empola e excita, e é todavia mais do que passatempo, diversão, digressão, e menos do que apostolado.
Não há meiguice moral que corte uma polegada sequer às abas do tempo, quando o homem não tem modos de o fazer mais curto.
Empacou o jumento em que eu vinha montado, grudadas as mãos na rédea, questão de segurança; fustiguei-o, deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, com tal desastre, que o pé direito me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela rua da grota fora – assim a conheço, desde a infância, quando estudei no Grupo Escolar Dr. Viriato Mascarenhas, mas tem seu nome próprio, não o sei. Digo mal: tentou disparar, e efetivamente deu dois saltos, mas alguém, que estava á soleira da mercearia, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo, as ações solidárias exigem sempre grandes esforços, perigos de toda natureza. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.
- Olhe do que você escapou, disse a pessoa, olhando-me, preocupado.
Agradeci-lhe cordialmente, dizendo-lhe que noutros tempos ninguém me socorreria, assistiria de camarote à cena, rindo, pensando era eu merecedor, que era bem feito; mas alguma coisa extraordinária estava acontecendo, pois que alguém me parara na rua, no dia anterior, soubera que sou cardíaco, pedindo-me que parasse de fumar, era eu muito importante, não queria ninguém perder-me para a morte. Perguntei-lhe que importância tinha eu, respondendo-me que entregar esterco nas casas para adubar os jardins era muito importante, a cidade estava maravilhada com as flores de todas as espécies, mudei completamente o panorama. Naquele acidente com o meu jumento Nullus, socorria-me ele.
Era verdade, escapei de uma terrível; se o jumento corre pela rua da grota fora, em direção ao Grupo Escolar, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, braços e pernas quebrados, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a importância que adquiri em entregar esterco nas casas, a minha alegria e satisfação; não mais poderia olhar de modo cínico e sarcástico para uma ex-autoridade que se achava mui importante por haver plantado semente de palmeira ao redor do cemitério, dizendo-lhe: “Esterco nos jardins proporciona flores, embeleza a cidade”. Sem qualquer interesse político, ideológico, apenas um sonho de embelezar, de os homens se sentirem felizes e alegres. Completando a minha crítica á ex-autoridade: “Suas palmeiras estão fora do cemitério, nenhuma sombra incide nas sepulturas, o sol continua castigando-as, os cadáveres insatisfeitos não podem dali sair. Seu grande feito de que tanto se orgulha, dizendo a todos, de nada serve, apenas aparência”.
A pessoa que se encontrava à soleira da mercearia salvara-me talvez a vida; era positivo. Eu sentia no sangue que me agitava o coração com três “stents”
Enquanto tomava consciência de mim mesmo, o meu salvador cuidava de consertar os arreios de Nullus, com muito zelo e arte. Se não estivesse assustado, diria até tratar-se de um artista, tomando em conta seus gestos e esmeros. Resolvi dar-lhe uma imagem de Maria Santíssima que trazia dependurada numa correntinha de outro no pescoço; não porque tal fosse o preço de minha vida – essa era inestimável. Mas porque era uma recompensa, digna da dedicação com que ele me salvou; Maria Santíssima o iluminasse sempre a socorrer os necessitados.
Já não digo o que pensei dali até o Hospital Santo Antônio, a pé, puxando Nullus. À noite, não pude dormir; estirei-me na cama, é certo. Ouvi as horas todas da noite. Quando eu perco o sono, o bater do pêndulo faz-me mal, maior que posso imaginar, o tique-taque soturno, vagaroso e seco parece dizer a cada golpe que vou ter um instante de vida a menos. Imagino um velho diabo carcomido pelo passado.
Lembrava-me deste acontecido, enquanto me banhava. Não era anedota. Havia acordado, uma hora que dormi, com a idéia fixa de escrever anedota. Tinha de fazê-lo.
Em verdade, jamais ouvira contar anedota de filósofo. Sócrates sempre, em toda a história do pensamento fora vítima de inúmeras lendas, mitos, piadas, anedotas, o que dificulta bastante o entendimento e compreensão de suas idéias, ideais. Ouvira esta anedota, quando estava saindo do cemitério, aquando a ex-autoridade me dissera haver sido quem plantara palmeira ao redor do cemitério, o que me desviou os pensamentos das jumentices dela. Jamais me esqueci desta anedota; a única, inclusive, ouvira outras, esquecia-as a todas, restam na memória alguns vestígios.
Xantipa, mulher de Sócrates, fora sempre considerada na história como a mulher mais antipática, radical, intransigente, indesejável, ridícula... Tudo para ela estava ruim. Se Sócrates tomava um copo cheio de água, achava rui; se tomasse meio, xingava, falava em seu ouvido o dia inteiro; se não tomasse água, achava ruim; se Sócrates dava-lhe de presente um trapo novo para cobrir-lhe a nudez, re-clamava, havia tantas roupas lindas e maravilhosas nas lojas, por que aquele trapo? Sócrates não estava mais suportando. Tivera uma idéia supimpa.
A padaria ficava a seis horas de distância do doce lar de ambos, ida e volta. Se acordasse Xantipa às três horas da manhã para ir buscar pão e leite, retornaria às nove da manhã, quando Sócrates já havia saído, estava em companhia de seus discípulos pelas ruas de Atenas.
Passado algum tempo, Sócrates, em suas andanças com os discípulos, ouvira alguém gritar a plenos pulmões: “Astronauta!” Pensara consigo mesmo não ser com ele, não lhe chamavam “astronauta”. Os gritos persistiram. Por todos os cantos, alamedas, becos, ruas de Atenas, por onde Sócrates passava ouvia “astronauta”. Já estava convencido a palavra ser-lhe dirigida. Não sei dizer se naquela época era dito como em nossa atualidade: “se se for dar atenção para tudo o que se ouve, acaba-se jogando pedras de tão ensandecido”.
Certo dia, ouvindo “astronauta”, parou, colocou a mão direita no queixo, atitude de que reflete profundamente, busca entender as coisas com percuciência.
- Espere – começou a meditar, refletir, os discípulos continuaram a caminhada, já estavam acostumados com suas paradas – “Astronauta vem de astronomia: o que mia é gato, gato gosta de rato, seu prato predileto, rato gosta de queijo, queijo vem do leite, leite vem da vaca, a vaca é mulher do boi, o boi tem chifres”.
Tirou a mão do queixo, gritou a plenos pulmões: “chifrudo é a puta que pariu”. Num segundo, as pessoas abandonaram a rua com aquele palavrão, que jamais ouviram dizer, Sócrates fora o inventor da “puta que pariu”, só mesmo filósofo. Foi embora reencontrar-se com seus discípulos que já estavam bem longe.
Dizem as más línguas que assim começou sua filosofia, assim começou a filosofia no mundo.
Seria sobremodo interessante se conseguisse reunir a minha situação passada com o jumento Nullus e a anedota de Sócrates, mas como iria fazê-lo não tinha a menor idéia. Terminara o banho. Enquanto fazia a barba, surgiu-me isto:
Desvarios se me anunciam
Esquisitices se me revelam
Em âmbitos e âmagos da insolência
O encontro de sentimentos e emoções
        Fugazes, efêmeros
       Distantes, impenetráveis.
Talvez levasse anos para escrever isto, mas não largaria da pena um só momento, depois do dia de trabalho com Nullus pelas ruas da cidade, mas com certeza iria fazê-lo.
   Per omnia saecula saeculorum...




Nenhum comentário:

Postar um comentário